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Análise
Exposição educativa de ideias, suposições ou hipóteses, baseada em fatos comprovados (que não precisam ser estritamente atualidades) referidos no texto. Se excluem os juízos de valor e o texto se aproxima a um artigo de opinião, sem julgar ou fazer previsões, simplesmente formulando hipóteses, dando explicações justificadas e reunindo vários dados

Famílias infelizes numa galáxia muito distante

Carrie Fisher estará sempre ligada a ‘Guerra nas Estrelas’ e ao personagem de Leia, uma princesa forte e corajosa

Guillermo Altares
Carrie Fisher junto ao elenco de Star Wars em 1978.
Carrie Fisher junto ao elenco de Star Wars em 1978.George Brich (AP)
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Michael Herr, o grande cronista do conflito do Vietnã, escreveu em Despachos do Front: “Não tivemos infâncias felizes, mas tivemos o Vietnã”. Muitos dos que nasceram no fim dos anos sessenta podem dizer que tiveram infâncias felizes, mas tiveram Guerra nas Estrelas”. Nestes tempos de videogames, efeitos especiais que recriam dinossauros e realidades virtuais, é difícil imaginar o que representou aquele conto de cavaleiros andantes galácticos. Mudou por completo nossa imaginação e, portanto, nossa forma de olhar o mundo. E essa revolução é impossível compreender sem a princesa Leia, personagem que interpretou, quando era apenas uma adolescente, Carrie Fisher, que morreu na terça-feira em Los Angeles aos 60 anos depois de sofrer um ataque cardíaco na sexta-feira.

George Lucas, que então tinha 30 anos, convenceu não só a 20th Century Fox para que financiasse uma história de galáxias distantes, que ia contra tudo o que se fazia no cinema naquela época, como convenceu atores como Alec Guiness para que pronunciassem frases como “que a força esteja com você”, que lhes pareciam totalmente ridículas. Além de alguns veteranos, Lucas cercou-se de um grupo de jovens atores, quase ou completamente desconhecidos, como Mark Hamill, Harrison Ford e Carrie Fisher. Com exceção de Ford, nenhum conseguiu se descolar daqueles personagens, ficaram marcados pela sombra de Darth Vader.

O resto de suas carreiras permaneceu ligado para sempre a essa história infantil, uma espécie de pastiche genial que misturava androides e criaturas de todo tipo com Rastros de Ódio e a saga do rei Artur. Para comprovar sua influência basta ver a lista dos filmes mais assistidos do ano: todos são de desenho animado ou super-heróis (além da oitava parte da saga, Rogue One) e todos devem algo àquele filme que infantilizou o cinema e que lotou as salas de meio mundo em 1977.

A genialidade de Lucas ficou evidente por sua capacidade para misturar as influências em sua inteligência para construir um mundo coerente completamente novo e pela intuição do papel que os efeitos especiais teriam não só no cinema, mas no mundo do futuro. Mas também foi um criador de personagens inesquecíveis, arquétipos, sem dúvida, mas aos quais foi capaz de dar vida própria: Han Solo, o anti-herói, ou melhor, o herói relutante que renuncia a seu egoísmo; Luke Skywalker, o jovem agricultor que sonha com naves espaciais e ao qual aguarda um destino único, graças a uma velha religião Jedi, e a princesa Leia, à qual se poderia aplicar a frase com que Tolstói começa Anna Karenina: “Todas as famílias felizes são iguais, mas cada família é infeliz à sua maneira”.

Leia foi infeliz à sua maneira, dentro e fora da tela (Carrie Fisher narrou em seus livros autobiográficos sinceros e crus seus problemas com o álcool, as drogas e a depressão), mas nunca foi uma princesa que esperava ser salva. Leia enfrenta o malvado Darth Vader, resiste à tortura, é desafiante, insolente, corajosa e sem ela a Galáxia jamais teria sido salva. Sim, ela esteve prestes a se apaixonar pelo irmão, seu pior inimigo era o pai e sabemos que além disso a história de amor com Han Solo não termina bem. Leia é uma heroína profundamente contemporânea, uma mulher tocada pela fama e uma princesa dura, forte e inteligente que demonstrou que na hora de lutar contra o mal os sexos não existem. Obrigado por nos ter dado uma infância feliz numa galáxia muito próxima.

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