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Carta de um policial grego a um menino refugiado morto: “Você pagou muito caro pelo sonho de seus pais”

Um agente policial publica no Facebook uma comovedora despedida a um garoto que perdeu a vida em um incêndio no campo de refugiados de Lesbos

María Antonia Sánchez-Vallejo
As chamas destroem as barracas no campo de Moria
As chamas destroem as barracas no campo de MoriaEFE

Quinta-feira, 24 de novembro. Final de tarde. O fogão a gás no qual uma família de refugiados curdos iraquianos prepara o jantar explode, provocando um incêndio na barraca onde vivem no campo de Moria (ilha de Lesbos, na Grécia). As chamas acabam com a vida da avó, de 60 anos, e do neto, de 6; a mãe e outro irmão sofrem queimaduras de primeiro grau e são retirados de Atenas. O acidente inflama os ânimos dos internos de Moria, provocando um protesto espontâneo, raivoso, contra os guardas do acampamento. Não é a primeira manifestação de desespero, e pode não ser a última.

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No outro extremo da Grécia, na bela cidade de Ioaninna (noroeste do país), o policial Konstantinos Vaggelis não presta muita atenção ao incidente, que por algumas horas ganhou as manchetes no noticiário. No entanto, conhece bem as condições do hotspot (centro de detenção): esteve trabalhando nele por dois meses, em serviços para reforçar o policiamento habitual, sobrecarregado pelo fluxo contínuo de novos detentos e o crescente desespero dos mesmos. Mas Vaggelis vai juntando os dados fornecidos pelas redes sociais e televisão e, três dias depois, um telefonema de colegas de Moria confirma suas piores suspeitas. A criança morta é Bares, um menino iraquiano sociável, inquieto e de olhar radiante que, no segundo dia de patrulha do policial em Moria, se jogou em seus braços e não o deixou um segundo sequer, até o retorno do agente a Ioaninna no final de outubro. Vaggelis também estabeleceu uma relação sincera com a família da criança, encantada de ver o mimo com o qual tratava o garoto.

Superando a dor e, embora acreditando-se estar curado de choques, blindado emocionalmente ou de pelo menos ser impassível, Vaggelis publicou naquele mesmo dia, em sua conta no Facebook, uma carta para Bares: “Algumas palavras para Bares, um pequeno anjo do Iraque que não conseguiu viver... Você chegou um dia e se pendurou em meu pescoço no meu segundo dia de serviço na ilha, e, desde então, eu o tinha ao meu lado em cada patrulha. Você e eu nos fizemos companhia durante dois meses, você me esperava, tendo ou não algo para te dar, você se jogava em meus braços e ficava ali, dando voltas ao meu redor... E hoje meus colegas me ligam e me dizem que você é a pequena alma que um dia antes se queimou no incêndio de Moria, filho da minha alma...

Você pagou muito caro pelo sonho europeu de seus pais, a guerra, o exílio... Você se tornou uma vítima, mas, onde estão os verdugos? Boa viagem, meu anjinho, quem dera poder vê-lo correr novamente, quem dera você me chamasse novamente “policial, policial” ou, como dizia, “pulizia”.

Vaggelis tem cerca de 40 anos e cara de gente boa. Na triste história de Bares, dá um nome ao que, para muitos, são apenas estatísticas, e esse nome é usado para transformar a dor em uma lembrança de injustiça. Mas Vaggelis não é o único que lamenta o destino dos refugiados (62.000 no país, cerca de 15.000 em ilhas do mar Egeu). Apesar das críticas frequentes de alguns ativistas e organizações humanitárias contra o Governo grego devido às deficiências no atendimento aos migrantes, o pesar de Vaggelis é o mesmo dos guardas costeiros gregos que, por salários de 800 euros (cerca de 2.800 reais), ou menos, estão cansados de retirar corpos de crianças da água, ou o pesar de agentes que, nos piores dias de Idomeni, em março passado, quando o fechamento das fronteiras dos Balcãs barrou a entrada de milhares de refugiados na Europa, admitiam ver jovens e crianças que imploravam sua ajuda (para cruzar a fronteira, para comer, para sobreviver) muito parecidos a seus filhos.

Isso, que tem sempre sido chamado de comiseração, e que é, sempre foi, anterior a toda solidariedade como ofício.

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