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Argentina se afasta do fantasma do ‘corralito’, que completa 15 anos

Quatro ex-presidentes que se sucederam nos dias mais trágicos do país acreditam que um desastre semelhante nunca mais se repetirá

Carlos E. Cué
Ezequiel Putruele

Todos os caminhos da Argentina levam a 2001, ano da pior crise econômica da sua história recente e de uma onda de protestos que acabou com 38 mortos nas ruas e cinco presidentes em duas semanas. “Até recentemente, muitos ainda achavam que Mauricio Macri sairia de helicóptero da Casa Rosada, mas agora já começam a ver que agimos com seriedade, que vamos cumprir o mandato”, dizia há pouco tempo um ministro argentino, reservadamente. A história recente deste país é tão sangrenta que seria o primeiro presidente não peronista a conseguir concluir seus quatro anos no cargo. Para eliminar qualquer dúvida e tentar esquecer o drama de 15 anos atrás, Macri mandou eliminar o heliporto que havia no teto da Casa Rosada, utilizado por Fernando de la Rúa para abandonar a sede governamental e evitar a multidão concentrada na Praça de Maio no dia da sua renúncia, 20 de dezembro de 2001.

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A crise de 2001 – que reuniu uma brutal retração econômica, uma onda de descrédito generalizado na política e um colapso moral e institucional num país que sempre se considerara o líder da América Latina – se tornou uma referência que explica boa parte da realidade argentina atual. Quando fazia campanha para tentar evitar a vitória eleitoral de Mauricio Macri, a presidenta Cristina Fernández de Kirchner pedia à população que se perguntasse como estava em 2001, antes da ascensão de seu marido Néstor Kirchner à presidência (que aconteceu em 2003), e como está agora. O próprio Macri define a si mesmo e ao seu partido como uma consequência daquela crise, porque nasceu depois. Quando precisa justificar cortes de gastos, Marcos Peña, principal assessor do presidente, argumenta que “os custos vividos hoje são para evitar uma crise como a de 2001”. Nas manifestações contra o presidente, ouvem-se gritos mandando-o preparar o helicóptero. Tudo gira em torno daquele momento dramático.

Macri completa um ano no cargo num momento em que a Argentina relembra outro dezembro, o de 15 anos atrás, o mais trágico da sua história recente. Desde 2001, todos os políticos temem os dezembros argentinos, e desta vez a ministra do Interior, Patricia Bullrich, está denunciando a todos os que se mobilizam no Facebook para organizar saques a supermercados, outra imagem simbólica daquela crise, junto com os tiros, os cavalos nas ruas, os bumbos e os panelaços.

A Argentina atual ainda sofre as consequências, e o elevado índice de pobreza que o Governo acaba de confirmar – 32% da população – tem muito a ver com as feridas deixadas por aquele colapso, mas quase nada na situação atual pode se comparar àquele desastre. “A situação de hoje é incomparável com aquela etapa”, admite o próprio De la Rúa, entrevistado pelo EL PAÍS em Buenos Aires. “Néstor Kirchner e Cristina deixaram claro: qualquer um que respirasse mais forte era acusado de destituyente [sabotador das instituições]. Nesse sentido se aprendeu. Agora há respeito pelas instituições, mas alguns perdem a cabeça”, explica. Também acredita que agora a oposição está “mais responsável” do que na sua época.

De la Rúa, que afundou definitivamente sua imagem com aquela fuga de helicóptero e com o corralito bancário, acabou sendo lembrado como a máxima figura da crise. Mas ele afirma que fez o que pôde e se viu apanhado entre duas frentes: por um lado o FMI, que fechou a torneira do crédito à Argentina; e, por outro, a oposição interna, que se empenhou em derrubá-lo.

O certo é que esses 32% de pobreza argentina atual é uma cifra discreta em comparação com a de 2001, quando chegou a 54% e deixou imagens únicas, como a de cidadãos, em plena estrada, servindo-se da carne de algumas vacas que haviam caído de um caminhão acidentado em Rosário. Qualquer coisa em comparação com aquilo parece muito pouco.

O PIB caiu mais de 10%, o desemprego beirou 20%. A desvalorização em 400% em poucas semanas levou os argentinos diretamente do topo da América Latina ao fundo das estatísticas. Todos viram como o Brasil – a quem sempre trataram como um irmão caçula – se tonava uma grande potencia e os superava amplamente. Além disso, outros países da região também cresceram e a Argentina teve que começar de novo para tentar recuperar sua histórica posição de privilégio. Desde então, avançou muito. Basta dizer que a renda per capita em 2002 era de 2.500 dólares e hoje é de 13.400 dólares. Mas a inflação está devastando uma economia que neste momento voltou a ser a mais cara da América Latina, medida em dólares.

Desde então não se perdeu o costume de resolver todos os conflitos nas ruas, mas agora sem mortos. Os bloqueios fazem parte da rotina diária, sobretudo nas ruas de Buenos Aires. Mas a polícia não age precisamente porque ainda continua viva a memória de 2001, e um novo morto poderia acabar com qualquer Governo. “Em 2001, a Argentina esteve à beira de uma guerra civil. As pessoas estavam armadas até os dentes porque temiam ser atacadas pelos mais humildes”, recorda Eduardo Duhalde, o presidente peronista que chegou ao poder 10 dias depois da queda de De La Rúa e que, segundo este, contribuiu com sua destituição. “Agora não é mais como em 2001, temos muito mais potencial econômico”, explica Duhalde. “O estouro se deu com o corralito”, lembra Ramón Puerta, que foi presidente por três dias naquele convulso dezembro, pouco depois de demitir De La Rúa. “Naqueles dias, assinei uma centena de decretos. Entre outras coisas, suspender o estado de sítio e encher os caixas automáticos. Enchemos os caixas e o país se tranquilizou”, conta Puerta. Eduardo Camaño, outro peronista que também foi presidente durante três dias, recorda a loucura daqueles dias: “Passamos 90 dias fechados. Coloquei cartazes na Quinta de Olivos [residência oficial do presidente] dizendo ‘vende-se’. Não podíamos fazer nada. Ninguém queria ser ministro. Pensavam que qualquer Governo ia durar 10 dias”. Todos concordam que aqueles tempos estão distantes e que, por mais complexa que seja a atual situação, em nada se parece com aquela. A Argentina já não tem medo de outro 2001, mas a memória daquela etapa trágica está longe de ser apagada.

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