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Patti Smith presta uma emotiva homenagem a um Dylan ausente na cerimônia do Nobel

A cantora, nervosa, teve que reiniciar sua atuação

Patti Smith, emocionada em sua atuação na entrega dos prêmios Nobel.
Patti Smith, emocionada em sua atuação na entrega dos prêmios Nobel.SOREN ANDERSSON (AFP)
Fernando Navarro

Nunca antes um premiado com o Nobel esteve tão presente em uma cerimônia como nesta, à qual o protagonista não compareceu. Bob Dylan, mestre dos paradoxos, conseguiu atrair a atenção de todos com sua ausência. Como em uma de suas mais célebres canções, Blowin’ in the Wind, seu nome estava flutuando no vento durante a cerimônia de gala em Estocolmo, que ficou marcada pela emotiva atuação de Patti Smith, interpretando quase em lágrimas uma composição de Dylan, e pelo magnífico discurso da Academia sueca em reconhecimento a um criador que “mudou” a “ideia da literatura”.

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Patti Smith, que se dedicou à poesia e à música maravilhada pela obra de Dylan, como reconheceu em várias ocasiões, ganhou a maior ovação da tarde deste sábado quando terminou sua interpretação de A Hard Rain’s a-Gonna Fall, canção de Dylan de 1963 pertencente ao disco The Freewheelin’ Bob Dylan. Previamente, a orquestra havia tocado distintas peças clássicas depois dos discursos dos ganhadores dos prêmios de Física, Química e Medicina, mas nenhuma alcançou o ponto apaixonado de Patti Smith − que, meio escondida em seus longos e volumosos cabelos brancos, teve de parar no meio da música, visivelmente emocionada. “Sinto muito. Estou muito nervosa, peço-lhes desculpas”, reconheceu diante da plateia, repleta de homens de smoking e gravata borboleta e de mulheres com vestidos luxuosos.

A cantora, pioneira do punk norte-americano, ficou nervosa como uma debutante, perdendo o fio de uma composição que contém versos tão incisivos como este: “Ouvi 100 tocadores de tambor cujas mãos ardiam, ouvi dez mil sussurros e ninguém escutando, ouvi uma pessoa morrer de fome, ouvi muita gente rir, ouvi a canção de um poeta que morria na sarjeta”.

Acompanhada pelos acordes do violão, foi uma interpretação sentida, com o peso extra da responsabilidade de representar o mais recente prêmio Nobel de Literatura − que não foi à cerimônia por ter “outros compromissos acertados previamente”, em uma manobra que muitos consideraram irresponsável e caprichosa, mas ilustra perfeitamente esse gênio irascível, hermético e ingovernável que, lá pelos anos sessenta, qualificado de “messias” ou de “maior poeta de sua geração”, decidiu fazer o contrário do que se esperava dele. Decidiu dar as costas aos mitômanos. Neste sábado, Patti Smith se encarregou do assunto e, assim como a Academia sueca reconheceu em Dylan o autor que, com suas canções, conduziu a poesia “a seu estilo mais elevado”, ela elevou a música à dimensão mais alta.

Uma dimensão parecida foi alcançada minutos antes pelo grande discurso do acadêmico Horace Engdahl, que, para falar do premiado, referiu-se a uma “literatura em transformação” ao longo da história, analisando o valor, além do que é conhecido como romance moderno, das fábulas, das epístolas, dos contos de Andersen e das canções como gêneros que também marcaram o desenvolvimento literário da humanidade. “Nossa ideia de literatura muda com todos eles”, disse. E recordou: “Lírica vem de lira”.

A partir daí, abordou a transcendência das rimas de Dylan. “Dissolvem contextos para criar outros, novos, que o cérebro humano dificilmente comporta.” Engdahl qualificou a obra do autor do Like a Rolling Stone de “choque”. “Ele se dedicou de corpo e alma à música popular norte-americana para os indivíduos comuns, tanto brancos como negros: canções de protesto, country, blues, o rock inicial, gospel e música mais comercial. Escutava música dia e noite, testando-a em seus instrumentos, tentando aprender. Mas, quando começou a escrever canções similares ao que ouvia, elas saíram de outra maneira. Em suas mãos, o material mudou. Daquilo que descobriu em relíquias e coisas descartadas, na rima banal e na sagacidade rápida, nas maldições e nas orações piedosas, nas brincadeiras doces e rudes, Dylan bombeou o ouro da poesia. Se foi de propósito ou por acidente, é irrelevante. Toda criatividade começa na imitação”, disse. “De repente, grande parte da poesia dos livros em nosso mundo se sentia anêmica, e as letras de canções rotineiras que seus colegas continuavam escrevendo eram como pólvora antiquada depois da invenção da dinamite. Logo, as pessoas deixaram de compará-lo com Woody Guthrie e Hank Williams e se voltaram para Blake, Rimbaud, Whitman, Shakespeare.”

“Ele devolveu à linguagem da poesia seu estilo elevado, perdido desde os românticos. Não para cantar as eternidades, mas para falar do que estava acontecendo ao redor de nós. Como se o oráculo de Delfos lesse as notícias da tarde… A hierarquia dos gêneros − a estimativa do grande e do pequeno, do alto e do baixo da literatura − se anulou. Que importância tem o nível de uma obra quando sua beleza é do mais alto nível? Essa é a resposta direta à pergunta de como Bob Dylan pertence à literatura: porque a beleza de suas canções é do mais alto nível.” E, para sentenciar a controvérsia surgida assim que foi anunciada a concessão deste prêmio a um músico, concluiu: “É um cantor digno de um lugar ao lado dos gregos e dos românticos, junto aos mestres esquecidos de padrões brilhantes. Os bons desejos da Academia sueca seguem o senhor Dylan em seu caminho”.

Dylan não esteve em Estocolmo, e talvez tenha visto a cerimônia em sua homenagem pela televisão, mas uma coisa parece clara: sua herança continua sendo única, motivo de polêmica e de paixões. Mas, como ficou demonstrado com este inverossímil prêmio Nobel, no fim das contas, é uma herança extraordinária.

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