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Um furacão no crânio

Castro morreu sem desembarcar da utopia, entre lágrimas e vivas de seus devotos e surdas maldições de suas vítimas

Ernesto Che Guevara e Fidel Castro. ROBERTO SALGA (AFP)Vídeo: QUALITY

Durante a apoteose revolucionária de 1959 em Havana, horas depois da derrubada de Fulgencio Batista, uma pomba pousou sobre o ombro de Fidel Castro, e o misticismo africanista se prostrou de joelhos agradecendo a Obatalá por ter indicado o escolhido. No dia dessa milagrosa unção, 8 de janeiro de 1959, o ateísmo se persignava e a exaltação católica levantava os braços ao céu agradecendo a chegada do Messias, do salvador de uma nação carcomida pela corrupção, pelo atraso e pela servidão aos Estados Unidos. Não houve idolatria que bastasse entre a multidão concentrada junto ao velho quartel Columbia na noite daquele transe. O caudilho morto nesta sexta-feira determinou o destino de três gerações de cubanos, inspirou arrebatamentos libertários nas periferias do planeta e colocou dois impérios da Guerra Fria à beira de um confronto nuclear. Ninguém conseguiu raspar as barbas mais emblemáticas do mundo, agora apagadas para sempre na maior das Antilhas, a terra do controvertido patriarca.

Mesmo quem o odiava, chamando-o de liberticida sem alma e tirano disfarçado de nacionalista, admitia a envergadura de um líder que fazia a história, construído para o combate e a resistência. Fidel Castro morreu em Cuba sem desembarcar da utopia, entre as lágrimas e vivas de seus devotos e as surdas maldições de suas vítimas. Nascido com um furacão tropical sobre o seu crânio, seu preceptor quando menino, o falecido padre Armando Llorente, escreveu no álbum de formatura colegial que ele tinha “madeira de herói” e que “a história de sua pátria um dia terá que falar dele”. Anticomunista até a medula no exílio em Miami, o jesuíta espanhol teria gostado de ouvir sua confissão e de absolvê-lo se tivesse se arrependido publicamente da suas maldades, mas não houve ocasião para isso, nem propósito de emenda, porque seu aluno era rebelde por natureza e estava fadado a continuar pecando. Ninguém podia lhe impor outros mandamentos senão os redigidos por seu próprio punho, de cumprimento obrigatório.

Até o advento da pomba e da coroação, com 32 anos completos, até a expulsão a tiros do ignorante sargento que havia transformado Cuba em quintal das multinacionais norte-americanas, em um escritório caribenho de Meyer Lansky e Lucky Luciano, o itinerário existencial de Fidel Castro respondeu aos impulsos e à audácia de um nacionalista virtuoso na oratória martiana [relativa a José Martí] e na sedução. Veio ao mundo num pequeno povoado do leste da ilha, chamado Birán, e desenvolveu um caráter rebelde, indomável. A mansidão não lhe teria permitido se tornar lenda, nem sobreviver aos anos de agitação social e de violência política no meio universitário, que encontrou Fidel, então com pouco mais de 20 anos, empunhando uma pistola belga. “Estava decidido a vender caro a minha vida.” Apequenar-se era incompatível com o grupo de insurretos que tomou o poder quando chegou à certeza de que só a tiros seria possível regenerar um país colonizado pela Espanha até 1898 e transformado em protetorado pelos Estados Unidos a partir de 1901, com a intervencionista emenda Platt incrustada na Constituição ilhoa.

O jovem advogado, graduado em 1950, nunca gostou de perder, mas o fracassado assalto ao quartel Moncada, em 26 de julho em 1953, lhe serviu para conquistar autoridade na Cuba das imoralidades, difundindo sua arenga fundacional, A História Me Absolverá, o catecismo criador de uma revolução reverenciada pela religiosidade fidelista, mas abominada por aqueles que sofreram expropriações e purgações stalinistas e perderam patrimônio e liberdades. Inspirador de sublevações nos países maltratados pelo colonialismo e por seus capatazes locais, nunca aceitou bem as derrotas, nem sequer nas pescarias com Gabriel García Márquez. “Uma noite havíamos saído para pescar com um amigo comum, que estava pescando mais do que Fidel, que se fazia de indiferente. Esse amigo começou a contar os peixes para que visse que tinha mais do que ele”, recordou o falecido escritor colombiano no documentário La Historia No Contada, de Estela Bravo. “Chegou um momento em que me aproximei do amigo e lhe disse: ‘Olhe, não continue pescando, porque enquanto você tiver mais do que Fidel nunca iremos embora, e já são quatro da madrugada’.” No final, Fidel teve uma onda de sorte e, ao pescar um peixe a mais que o amigo, disse: “Bom, vamos embora, porque já são cinco da manhã”.

Fidel Castro perdia o jogo quando partiu para o México, em 1955, depois de cumprir dois anos de prisão na ilha de los Pinos, lendo 12 horas por dia e conspirando as outras 12. Suas ferramentas mais eficazes foram a informação, o cálculo, a eloquência, e um arrojo compatível com seu temperamento intrépido. Convencido de que havia chegado a hora da sublevação, voltou no ano seguinte a Cuba a bordo do iate Granma, com 82 homens e a firme determinação de encontrar a morte ou recuperar a pátria.

Recuperou-a, mas toda para si, conforme lhe recriminaria até a morte gente que combateu ao seu lado na cordilheira do sudeste, onde começou a revelar o heroísmo adivinhado pelo padre Llorente. Contra todos os prognósticos, dois anos depois do estampido revolucionário contra a repressão e a indecência a tripulação do navio adquirido em Veracruz e as tropas operárias e camponesas incorporadas em terra derrotaram o Exército fornecido pelos Estados Unidos para sustentar Batista, que fugiu para a República Dominicana com um botim de 100 milhões de dólares.

A vitória do Ano Novo de 1959, em plena guerra de blocos entre os Estados Unidos e a União Soviética, espalhou-se como a pólvora na Bolívia, Nicarágua, Chile, Congo e em outras periferias do Terceiro Mundo assoladas pela miséria, o racismo e as plutocracias retrógradas.

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O discurso do comandante da serra Maestra era fascinante para a esquerda comunista, para a burguesia nacionalista e ainda mais para os 200 milhões de miseráveis latino-americanos. Moscou esfregou as mãos imaginando um novo aliado, enquanto Washington, perdido o fantoche insular, tentou seduzir o seu barbudo sucessor para evitar o nascimento de um regime comunista a apenas 145 quilômetros da costa da Flórida. A missão se mostraria impossível, pois 60% dos camponeses cubanos viviam na miséria, e o chefe miliciano os inflamou depois de se embeber das teorias anticapitalistas de Marx e Lênin, às quais nunca renunciou.

O depoimento de Arthur M. Schlesinger, assessor de John F. Kennedy, contribuiu para entender a popularidade da sublevação contra a canina submissão de Batista à dominação ianque. “Eu adorava Havana, e me horrorizou a maneira como essa adorável cidade se transformou lamentavelmente num grande cassino e prostíbulo para os homens de negócios norte-americanos (…). Meus compatriotas caminhavam pelas ruas, pegavam meninas de 14 anos e atiravam moedas só pelo prazer de ver os homens se jogarem nos esgotos para apanhá-las. A gente se perguntava como os cubanos, vendo esta realidade, podiam considerar os Estados Unidos de outro modo senão com ódio.” O cantor negro Harry Belafonte nunca viu democracia em Cuba. “Eu vi racismo e opressão, ignorância e doenças.”

Os discursos da refundação republicana foram comovedores, incendiários, premonitórios do iminente choque com Washington. Intelectualmente brilhante, fracassaria como governante, porque tinha nascido para lutar contra os Estados Unidos e comandar a agitação universal. Suas palavras de ordem antiamericanas germinaram em Cienfuegos, em Trinidad, na Índia de Nehru e nos subúrbios da Cidade do Cabo, que vibravam ao ouvi-lo trovejar contra o jugo imperialista, os monopólios fraudadores, a escravidão e o apartheid. O mea culpa dos mansos e toque a alerta dos impaciente se sucediam do rio Bravo à Terra do Fogo quando o tribuno antilhano bramava contra a submissão da América Latina ao neocolonialismo.

Sendo impossível a concórdia com o fascinante rebelde, teve início um toma-lá-dá-cá entre sua administração e os Estados Unidos. A reforma agrária de maio de 1959 afetou a United Fruit Company e outros monopólios e motivou uma troca de represálias durante o biênio 1960-62: expropriação dos bens norte-americanos, anulação das importações de açúcar cubano, embargo, ruptura de relações diplomáticas, invasão da baía dos Porcos, alinhamento com a URSS e Crise dos Mísseis. A nação caribenha resgatou a soberania perdida em 1901, alfabetizou e universalizou o atendimento médico, um marco na América subdesenvolvida, mas ignorou as eleições e liberdades prometidas. “Descobrimos outras formas de democracia, encontramos outras formas mais honestas de fazer o povo participar. Descobrimos que era melhor que a norte-americana”, diria, contrariando aqueles que o acusavam de ser avesso à democracia e viciado no poder.

A fracassada ocupação militar organizada pela CIA e o síndrome do estado de sítio haviam entronizado o lema “Com a Revolução tudo, contra a Revolução, nada”, e desde então nada foi possível fora do Partido Comunista, que ocupou todo o espaço. Quem se revoltou contra esse preceito foi proscrito, preso ou partiu para o exílio. A repressão cultural durante o denominado quinquênio cinzento (1965-70) custou talentos insubstituíveis. Tudo foi superlativo em Fidel Castro. O cinema, a academia e as bibliotecas falam do portento que sobreviveu a dez presidentes norte-americanos e que brigou com o soviético Nikita Khrushchov quando este, sem consultar Havana, pactuou com Kennedy a retirada dos mísseis da ilha. Ensaios, biografias, e também fábulas, seja em espanhol ou em chinês, ilustram a trajetória do homem que influiu nos movimentos de libertação americanos e afro-asiáticos do século XX e entrou no XXI sem ceder ideologicamente.

Aceitou como inevitável o acordo de 17 de dezembro de 2014 com os Estados Unidos, seu frustrado verdugo, mas nunca o aplaudiu em público. Sempre no olho do furacão, amparado por Moscou até sua desintegração como metrópole, foi amigo de Nelson Mandela, Agostinho Neto, Samora Machel, Amílcar Cabral, Julius Nyerere e Sekou Touré, enviou 300.000 soldados para lutarem em Angola (1974-92), e não houve guerrilha americana ou palestina que não passasse pela Meca cubana para treinar, prestar homenagens e receber orientações. Inspirou populismos e sublevações contra as ditaduras militares de obediência norte-americana, e provavelmente está sendo pranteado por milícias anacrônicas, mas dele também se lembrarão admiradores que deixaram de sê-lo quando apoiou a entrada dos tanques do Pacto de Varsóvia na Praga de 1968, argumentando que a contrarrevolução e o longo braço do imperialismo se apropriavam da Tchecoslováquia.

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Nunca falou sobre sua vida familiar e pouco se sabe sobre a convivência com sua viúva, Dalia Soto del Valle, com quem teve cinco filhos, provavelmente a mulher mais importante da sua vida. Fidelito (1949) foi fruto de seu primeiro e fugaz matrimônio com a Mirta Díaz-Balart, e sua filha Alina (1956) nasceu de uma breve relação sentimental com Natalia Revuelta. Em seu livro de memórias lançado em 1988, Alina Revuelta descreveu o pai como “um ditador distante”, mas em declarações à revista Foreign Policy livrou a cara do seu tio Raúl: “Ele era a pessoa a quem se podia recorrer para pedir ajuda”. Frugal à mesa, Fidel Castro quase morre em 2006 por causa de uma crise estomacal. Havia deixado de fumar nove anos antes e prolongou sua paixão pelo mergulho submarino. Seu entusiasmo pelo xadrez político não teve prazo de validade. Apesar de ter sido excomungado em 1962 pelo papa João XXIII, o celebérrimo ateu assistiu à missa fúnebre por João Paulo II em 2005, sete anos depois da visita pastoral do pontífice à ilha para tentar, sem sucesso, incentivar uma primavera cubana.

Evangelizado desde sua primeira arenga universitária, o verbo de Fidel Castro se fez revolução e habitou Cuba por 57 anos, porque deu esperanças a milhões num mundo que exigia justiça e precisava de visionários. Mas a força da palavra foi perdendo força, mostrou-se enganosa e desmoronou quando desapareceram os subsídios da URSS e ele teve de governar na orfandade. Cuba estava arruinada. A oratória havia sido sua arma mais importante, porque o desembaraço tornava possível o impossível, mas os anos tornaram grisalhas suas barbas e os mitos revolucionários, enquanto a Internet e a globalização vieram para ficar. As carências do regime precisaram, então, enfrentar o desabastecimento e o crescente descontentamento social.

Resumir uma biografia tão universal e extraordinária é impossível, porque nada na existência do falecido foi rotineiro. Corolário do fracasso econômico e do absolutismo ideológico, a simulação e cinismo se propagaram feito pólvora. Mais de dois milhões partiram sonhando em voltar algum dia. Talvez voltem agora, quando parece ter amainado a síndrome do estado de sítio e seu irmão Raúl reconduz o país a objetivos mais realistas, sempre sem ceder o poder político. Essas metas foram inabordáveis durante a supremacia do comandante que cavalgou sobre Rocinante, mas não quis colocar-lhe rédeas quando o pangaré da fantasia cervantina se perdeu na quimera.

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