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Coluna
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A suruba como história do Brasil

O 'Rio em shamas' reafirma a crônica como o grande gênero descobridor do país

Manifestante durante protesto contra o Governo Temer, em 11 de novembro, no Rio de Janeiro.
Manifestante durante protesto contra o Governo Temer, em 11 de novembro, no Rio de Janeiro.YASUYOSHI CHIBA (AFP)

Rio em shamas, com “sh” mesmo, como nos mil graus da ortografia-moleque da Internet, tal qual o batismo do livro de Anderson França, o Dinho, o cronista que faz cada palavra valer por um milheiro de imagens cariocas, digo, universais.

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Em cada crônica um cartão postal às avessas, a tv da janela do trem que exibe a real da guerra, o mundo visto a partir de um travelling nervoso na câmera do escritor Lima Barreto com o auxílio dos roteiristas Bezerra da Silva (“Se gritar pega ladrão”) e Fausto Fawcett no seu futurismo “Favelost”.

Chuto a bola das referências, mas é desnecessário. Anderson França é Dinho por ele mesmo. Repare nas cenas cotidianas, como no Short Cuts do cinema, que revelam um Rio zero bossa nova e sim um Rio que se joga “em cima de fardo de óleo de soja Lisa, depois de luta livre para levar a última saca de Milharina”. O Rio comédia das promoções do Aniversário Guanabara, supermercado popular da cidade.

A tragédia carioca encoberta pelo obalalá midiático nas gestões de Cabral & companhia já constava dos posts crônicos e agudos de Rio em Shamas, agora reunidos em um livro pela editora Objetiva. Leia, Lola, leia. A correria literária do rapaz balança a roseira da última flor do lácio. Opa, ia esquecendo, como pode!, além das traquinagens de Cabral — atualmente despachando no presídio de Bangu —, Dinho antecipou também o triunfo de Donald Trump, confira na página 47, meu caro.

Suruba carioca

Cronista de costumes, Anderson França mostra a relação do subúrbio carioca — mas óbvio que vale para qualquer periferia brasileira — com as novas possibilidades de consumo no período de bonança do governo Lula. Poderia citar aqui mil exemplos materiais, voltar às gôndolas do Guanabara ou pegar uma tela plana de plasma no Ricardo Eletro. Nada disso. Vamos direito a um swing em Madureira. Pra cima com a viga, rapaziada.

Só Reich salva, amém, e os neopentecostais passam o chapéu e cobram a conta.

Tudo bem, a classe operária vai ao paraíso, como pregava aquele filme russo. “A classe D vai à suruba”, escreve o roteirista Dinho no texto genial do seu livraço:

“Carnê das Casas Bahia tá pago? Nome saiu do SPC? #PartiuSwing. Acabou as provas da facul? #PartiuSwing. Comecei a fuçar os perfis. Tudo gente da gente. Auxiliar de pedreiro, motorista de ônibus, doméstica, eletricista, e tudo do lado de cá do Rio.”

Não o papai-mamãe dos artigos da Marie Claire para as recatadas esposas da elite paulistana, adverte o autor. É a tia Dioneia de Realengo na parada. Com o marido Salatiel, segurança do hospital Miguel Couto.

Dinho, um cronista que me lembra também os enredos do samba-de-breque de Moreira da Silva, dá a letra com estilo, aprendeu com a sua mãe nordestina que o demônio é coisa de literatura russa, não almoça nem janta nos arrabaldes de Cavalcanti, um dos seus recortes geográficos de um outro Rio de Janeiro.

Voltemos ao vuco-vuco do swing em Madureira:

“Quando você vê De olhos bem fechados, do Kubrick, cê imagina que suruba é num castelo, gente rica, blah. Cê pensa que mulher que topa um a 3 ou 4 é uma mulher toda elaborada e cheia das complexidades, tatuagens e mestrados na PUC. Que nada. Meu amigo, a roda girou, Lula alavancou esse país e todo mundo tem cartão de crédito e uma conta em site de casais.”

Quem precisa de filósofo, historiador, sociólogo ou economista para fazer uma leitura genial do Brasil das últimas duas décadas? O Rio em shamas reafirma a crônica como o grande gênero descobridor do país. O Rio em shamas traz a babilônica sacanagem, em grosso e a varejo, além muito além do arroz de pato do Leblon ou da Fiesp.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de Big Jato (Companhia das Letras), entre outros livros. Na televisão, comenta assuntos gerais nos programas “Papo de Segunda” (GNT) e “Redação Sportv”.

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