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Coluna
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Duzentos anos de um criador da memória histórica brasileira: Varnhagen

Varnhagen representa a História sob um ponto de vista conservador e liberal, essa perspectiva ainda caracteriza a vida política, econômica e social do Brasil

a pintura "Mestiço" de Cândido Portinari representa a mistura de raças.
a pintura "Mestiço" de Cândido Portinari representa a mistura de raças.Cândido Portinari

Comemora-se este ano o bicentenário de Francisco Adolfo de Varnhagen (1816-1878), reconhecidamente um dos maiores historiadores brasileiros de todos os tempos. Sua leitura continua essencial para a compreensão do pensamento das elites monárquicas brasileiras no século XIX.

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Filho de um engenheiro alemão estabelecido em Lisboa, depois em Sorocaba (1809), onde veio a nascer, Francisco Adolfo formou-se em Portugal. Retornado ao Brasil, fez reconhecer sua nacionalidade brasileira e seguiu a carreira diplomática. Pouco antes de morrer, recebeu o título de Barão, depois Visconde de Porto Seguro. Sua grande devoção pelo Brasil, era pelo Brasil europeu – monárquico. Seu Brasil seria o da aristocracia branca e da família imperial. Um Brasil por assim dizer inventado por Portugal. Historiadores que o seguiram, imbuídos de sentimentos mais nativistas, não deixariam de tachar sua obra de elitista, abrindo-se assim uma certa divisão entre nossos primeiros historiadores.

Varnhagen escreveu em um período em que os brasileiros ainda não tinham uma percepção minimamente clara de sua própria identidade. Tinha sido antecedido por alguns nomes que haviam feito aproximações narrativas à História do país: Pero de Magalhães Gândavo, Frei Vicente do Salvador, Sebastião da Rocha Pita, para citar alguns.

A partir da Carta de Caminha, inventara-se um Brasil idealizado em que os nativos eram descritos como extremamente receptivos à catequização e, portanto, salvo quando em contato com colonizadores que não os ibéricos, se prestavam à miscigenação e à subserviência.

Essa visão idílica ou edênica do Brasil se prolongou nos séculos que antecederam a transmigração da Corte em 1808. Hélio Vianna comenta que durante o período colonial, quando o ensino, no Brasil, estava a cargo principalmente dos religiosos, estudava-se apenas a História Sagrada e da Igreja. Somente após a Independência é que surgiu a ideia de compor uma obra mais ampla.

Contemporâneo dos primeiros anos de fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Varnhagen partilhava da inquietação cultural e, ao mesmo tempo, política de fixar um entendimento da identidade do Brasil sob perspectiva própria. Um país sem passado dificilmente entende seu presente e constrói seu futuro. Era capaz de sentir o Brasil "de dentro"e, ao mesmo tempo refletir sobre o país com olhos "de fora".

Os fundadores do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB) objetivavam efetivamente reconstituir a História do Brasil para consolidar o ideal nacional. Não dispondo de um passado medieval, recorreram à temática indígena, ou seja, a um “indianismo erudito” por oposição ao indianismo literário.

Preocupava ao IHGB estimular estudos monográficos regionais do Brasil e Histórias Gerais. O problema era tão inquietante que o IHGB decidiu empreender um concurso sobre o tema “Como deve ser escrita a História do Brasil”. O concurso foi vencido por Von Martius, o sábio germânico trazido pela Imperatriz Leopoldina para estudar o país. Já retirado na Baviera, Von Martius apresentou um papel que teve grande influência na construção da matriz por assim dizer interpretativa e narrativa da História do Brasil, baseada num conceito muito avançado para a época: o cruzamento das raças europeias, indígenas e africanas. Ainda defrontado com a escravidão e com certas consequências do aniquilamento das populações indígenas, os historiadores brasileiros adotaram o mito da integração racial com um fundamento benigno da construção da identidade e da nacionalidade brasileiras, sob o regime monárquico. Varnhagen permaneceu fiel ao nacionalismo, ao estatismo, à monarquia, ao historismo, ao romantismo e ao liberalismo. E no que se refere ao Estado: tradição, autoridade, organicidade, natureza espiritual e natureza moral.

Foram portanto curiosamente dois sábios de origem germânica que estabeleceram as bases da escritura da História do Brasil no Século XIX.

Em seus livros, Varnhagen demonstrou que não ignorava os problemas com que se defrontava o país na construção do espírito de nação: a falácia de que se tratava de um grande país brindado com uma natureza rica; a precariedade da formação dos políticos; o espírito de imitação; a falta de coragem política para enfrentar situações adversas; a tendência a “mandar” mais do que “governar”; as práticas clientelistas; a permanência de uma mentalidade colonial. Qualquer coincidência com nosso atual estado de coisas, diga-se entre parênteses, é mera semelhança...

Para enfrentar esses vastos problemas em meados do século XIX, Varnhagen acreditava que o Estado deveria ser moldado por um modelo monárquico parlamentarista e unitário. O Estado, para ele, era equivalente à civilização. É bem conhecida sua definição da História: “mestra da vida e conselheira dos povos e príncipes do porvir”. Uma História, portanto, na sua concepção, voltada para a liderança do Estado. Era contrário à escravidão mas não chegou a propor a abolição. Apenas dever-se-ia parar o tráfico e dar liberdade aos nascituros. Pretendia acreditar que com essas medidas graduais (como acabou acontecendo!) o problema seria resolvido num incerto ponto futuro.

Varnhagen teve o grande mérito de ver o Brasil simultaneamente com olhos "de fora" e "de dentro". Um europeu aculturado na elite portuguesa, sentiu o Brasil também com espírito de brasileiro.

Ortega y Gasset dizia que a “História que representa nossa ocupação com o passado surge da nossa preocupação com o futuro”. Na verdade, diz Ortega, a História fala sempre de nós; a questão está em que saibam contar-nos e que nós saibamos escutá-la. O problema, conclui o grande intelectual espanhol, é que “não sabemos o que nos acontece. E isso é exatamente o que nos acontece: não saber o que nos acontece”! Nada melhor, portanto, e aqui concluo meu diálogo imaginário com Ortega, do que procurar entender o passado sob as diferentes perspectivas com que nos foi legado.

Varnhagen representa uma interpretação da História do Brasil sob uma perspectiva conservadora, com alguns traços de liberalismo. Uma perspectiva que até os dias de hoje caracteriza a vida política, econômica e social do Brasil. É preciso refletir sobre nossa origem para poder entender nosso presente, infelizmente caracterizado, como era desde a instalação da Corte no Rio de Janeiro, por corrupção, violência, descontinuidade, falta de espírito público e desigualdade.

A monarquia deixou de existir ao final do século XIX. O Brasil idealizado que a instituição monárquica representava talvez ainda não se tenha extinto totalmente no caminho que estamos percorrendo lentamente para a consolidação de nossa democracia, com igualdade econômica e social. Raízes profundas que ainda geram as desigualdades que nos atormentam, assim como a prática da corrupção que todavia não conseguimos controlar. Varnhagen permanece, portanto, essencial para a compreensão do mistério brasileiro. Seu Brasil visto, entendido e relatado a um tempo de fora e de dentro, constitui peça fundamental para a construção de nossa identidade nacional.

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