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Campanha agressiva dilacera imagem do futuro dos Estados Unidos

Todos os demônios nacionais, do racismo à misoginia, vieram à tona durante a disputa presidencial

Seguidores de Donald Trump em Reno. JOHN LOCHER APFoto: atlas
Marc Bassets

Os Estados Unidos se olham no espelho, e o reflexo é pouco amável. Todos os demônios nacionais, do racismo a misoginia, vieram à tona durante a campanha eleitoral dos últimos meses, excepcionalmente longa e virulenta. Toda eleição presidencial, como a desta terça-feira, contrapondo a democrata Hillary Clinton ao republicano Donald Trump, serve como psicanálise coletiva, uma bússola que indica onde a sociedade está e para onde se dirige. A impopularidade de ambos os candidatos, os insultos e desqualificações, o descontentamento com a classe política, o medo da divisão racial e social e os alarmes sobre o apocalipse iminente deixaram o país esgotado e ansioso por virar a página.

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A eleição de um presidente dos Estados Unidos é um momento ímpar. Não se trata apenas de escolher um chefe de Estado e de Governo, e sim um símbolo, o líder da tribo, o homem ou mulher cujo retrato será pendurado nas paredes das salas de aula de milhares de escolas em todo o país, parte da armação que articula uma nação de dimensões continentais e vínculos comuns tênues, mas inquebráveis, como a bandeira e o hino.

Em 2008, quando o democrata Barack Obama foi eleito presidente pela primeira vez, os norte-americanos ofereceram ao mundo – e a si mesmos – uma imagem que fez sua autoestima disparar. Pela primeira vez, o país da escravidão e da segregação levava à Casa Branca um homem de origem africana, membro de uma das minorias mais humilhadas. Os EUA estavam em plena recessão econômica, travando duas guerras ao mesmo tempo, mas se sentiam à altura de seus ideais institucionais.

O candidato derrotado, o senador republicano John McCain, felicitou Obama recordando como, no começo do século XX, um convite para que o líder negro Booker T. Washington visitasse a Casa Branca provocou uma reação adversa. Não era comum naquela época que um afro-americano frequentasse os salões do poder. “Hoje a América está muito longe da intolerância cruel e orgulhosa daquele tempo”, celebrou McCain. “Não há melhor prova disso do que a eleição de um afro-americano para a presidência dos Estados Unidos.”

Oito anos depois, o partido de McCain apresentou um candidato propenso a proferir comentários “cruéis e orgulhosos”, para usar os adjetivos de McCain, sobre hispânicos, as mulheres e os muçulmanos. O fantasma do racismo – o trauma primitivo da maior potência mundial – parecia desaparecido para sempre. Mas a sintonia do aspirante republicano à sucessão de Obama com grupos extremistas da nova direita alternativa – a chamada alt right – e com velhos grupos na órbita da Ku Klux Klan revelou uma realidade desagradável. O racismo nunca foi embora. E o fenômeno Trump – o candidato que iniciou a campanha qualificando os imigrantes mexicanos de criminosos e violadores, prosseguiu-a prometendo vetar a entrada de mais muçulmanos nos EUA e a encerra agora com anúncios de tom antissemita – ofereceu ao mundo, e aos próprios norte-americanos, uma versão do país que muitos teriam preferido não enxergar.

Só outra figura política se aproxima em impopularidade de Trump: a sua rival democrata, Hillary Clinton. A ex-secretária de Estado pode se tornar a primeira mulher a governar os EUA, depois de 44 homens, mas inspira poucos sonhos, e as mudanças antevistas com ela são, para metade do país, uma mera viagem ao passado, à época da presidência do marido dela, Bill Clinton (1993-2001), marcada por uma névoa de investigações e suspeitas. Frente à mensagem clara e simples de Trump, a democrata não apresentou um programa que despertasse entusiasmo, um projeto de país. Falta-lhe the vision thing, “o troço da visão”, como dizia com desânimo outro político pragmático e com dificuldades para articular uma visão de futuro, o presidente republicano George H.W. Bush (1989-1993). Certamente era inevitável, mas a mensagem democrata para mobilizar o seu eleitorado se limitou a alertar sobre o risco que o candidato republicano representa para a democracia.

Trump foi mais estridente e ultrapassou mais limites do que qualquer outro aspirante sério à presidência nos tempos recentes. Desenhou um país à beira do colapso, aterrorizado pela delinquência e invadido por hordas de estrangeiros, uma potência em declínio feita de boba pelo resto do mundo. Milhões de norte-americanos, entre eles menores de idade, o viram zombando de um jornalista deficiente, o ouviram ofender mulheres e ex-combatentes como McCain e chamar Clinton de perigosa, ameaçando colocá-la na cadeia. A cena dos delegados convenção do Partido Republicano em Cleveland (Ohio), em julho, gritando em coro “prendam-na” não é o reflexo mais edificante de uma democracia que se vê como modelo.

“A cada quatro anos os norte-americanos se informam a si mesmos sobre quem são e onde estão no espectro da tradição e da aspiração que normalmente demarca nossas políticas”, escreveu a romancista Marilynne Robinson, amiga com quem Obama treina para os debates. De fato, esta eleição é uma radiografia do país: suas obsessões e seus traumas, seus medos e suas esperanças. Desta vez, ao contrário de 2008, os Estados Unidos voltaram a se olhar no espelho, e não gostaram nada do que viram.

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