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Nelson Motta: “Na música, o Brasil não tem problemas. Somos a solução”

Produtor e jornalista lança ‘101 Canções que Tocaram o Brasil’, resgate de hits nacionais de 1899 a 2003

Nelson Motta em seu apartamento, em Ipanema.
Nelson Motta em seu apartamento, em Ipanema.Eduardo Zappia

Quando o produtor Peninha sugeriu a Nelson Motta que fizesse um livro listando e comentando as maiores canções nacionais, ele pensou que seria fácil. Jornalista e produtor que viveu décadas douradas da música brasileira, Nelson assumiu a tarefa e agora lança, pela editora Sextante, 101 Canções que Tocaram o Brasil. Não sem uma dose de alívio: “Foi o livro mais difícil que eu fiz na vida”, desabafa aos 71 anos, depois de ter tido que escolher hits de feras como Tom Jobim e Vinícius, Chico Buarque e Caetano, Lulu Santos e Marisa Monte.

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O comentário vem de alguém que em 2000 lançou Noites tropicais, amplo compilado de memórias pessoais e registros históricos que envolvem só os pesos pesados da música nacional. Vinícius, Tom, Elis Regina, Nara Leão, Roberto Carlos, Tim Maia e tantos mais – com todos eles, Nelson trabalhou e conviveu. De muitos, tem retratos decorando as paredes do apartamento onde recebe o EL PAÍS, em Ipanema, para falar do novo trabalho e de projetos atuais. Entre eles, os musicais que prepara para o teatro, a vida como escritor de ficção e a versão em português de uma canção de Amy Winehouse que está desenvolvendo para Maria Bethânia. Por essa trajetória longa e versátil, por sinal, ele receberá uma homenagem do Grammy Latino na premiação que acontece em 17 de novembro em Las Vegas.

Em 101 Canções, o resgate começa com Chiquinha Gonzaga, alguém que bateu de frente com a sociedade conservadora de sua época, e a criação de Ó Abre Alas, em 1899. E termina com À Procura da Batida Perfeita, de David Corcos e Marcelo D2 – de novo, um contestador – em 2003. Mas o livro é pautado não por polêmicas e sim por “popularidade e profundidade” – conceitos que Nelson usou para selecionar faixas que, no fim, são um rico repasso da música do país, sempre atrelado à história. Sobre parar a seleção 12 anos atrás, ele defende que o tempo ainda precisa mostrar o que do panorama recente ficará para a história. Mas soando "meio desinteressado" em relação às novidades, não consegue esconder que vê na música brasileira um passado glorioso difícil de superar.

Pergunta. Foi muito grande o esforço de chegar a 101 canções que contam a história da música brasileira?

Resposta. Sofri bastante. Até o momento em que o livro foi para a gráfica, eu quis trocar uma música ou outra. A solução que encontrei foi fazer um bonus track de 50 músicas, porque havia muitas que podiam estar ali e que não estavam. Isso me afligia. Também tive a preocupação de conseguir um equilíbrio entre as épocas e os gêneros musicais, para ter um registro histórico, uma sensação de como as pessoas se sentiam na época.

P. Você teve de lidar com compositores muito relevantes, cujas obras são extensas e dariam, sozinhas, uma listagem à parte.

R. Esse foi um enorme desafio. Tom Jobim e o Chico Buarque, compositores fabulosos, são casos assim. Entre as várias canções do Tom que eu poderia escolher, incluí as que mais tocaram: Eu sei que vou te amar, um clássico que terminou inclusive virando música oficial de casamento; Águas de março, uma das canções mais tocadas no mundo, e por aí em diante... Já o Chico poderia ter incluídas nesse livro sozinho 30 ou 40 músicas que tocaram muito. Tive que escolher as mais representativas, como Apesar de você, que é uma música política dentro de uma época. Além de ser uma grande música, tocou e lavou a alma de todo mundo. Depois, tem Construção: uma exibição de virtuosismo poético, musical. E depois tem Olhos nos olhos, que a meu ver representa uma série de canções para mulheres do Chico, em que ele é um grande mestre, né? Por fim, faltava a grande canção de amor. Terminei sendo arbitrário mesmo e escolhi a que eu mais gosto: Futuros amantes.

P. Você tentou fazer algum tipo de resgate de uma ou mais canções que tenham sido subvalorizadas ao longo da nossa história musical?

R. Acho que não teria sentido desencavar pérolas escondidas da MPB, ainda que exista um monte. Esse seria um projeto à parte, mas precisaria ir acompanhado de um CD ou de links, numa versão digital. Daria um ótimo livro: As pérolas secretas... ou Os segredos mais bem guardados da música brasileira. Tem músicas incríveis que passaram batidas ou que pouca gente conhece, porque foram gravadas por cantores obscuros. No livro das 101 Canções, tive de usar certos marcos regulatórios da popularidade e de profundidade, pensando em como cada canção tocou as pessoas.

P. A música brasileira, além de ter qualidade, diz muito sobre a história do país. O Brasil deu certo na música?

"Impossível entender o Brasil só através da economia, da sociologia e da política. A música popular é a alma do país"

R. Acho impossível entender o Brasil só através da economia, da sociologia e da política. Na verdade, é difícil entendê-lo de qualquer jeito, mas sem a música popular fica impossível... É a alma do país. É como se, nela, as pessoas se expressassem com os seus melhores instrumentos. Vejo como uma dádiva divina da miscigenação. Nem a música americana, que é a melhor do mundo, tem tanta diversidade de ritmos, de escolas... Aqui, é muito diferente o que se faz no Belém do Pará, do que se faz em Salvador, em São Paulo e assim por diante.

P. Há quem diga que o Brasil faz parte do primeiro mundo da música, assim como Cuba.

R. Concordo. Na música, não temos problemas. Somos a solução.

P. Você se aproximou da literatura e hoje está muito envolvido com livros. Por que começou a escrever ficção?

R. O impulso veio da minha mãe. Ela lê muito, de tudo, e sempre foi minha primeira leitora. Quando saiu Noites Tropicais, em 2000, ela disse: “Está ótimo, meu filho, mas isso é livro de jornalista. Se você quiser escrever mesmo, botar lá na ficha do hotel ‘escritor’, tem que fazer um romance”. Aí eu fiz O canto da sereia. Estava trabalhando com a Daniela Mercury e quis fazer uma história policial no ambiente do Carnaval baiano, de trios elétricos e multidões, com toda aquela indústria por trás. Na verdade, gostei mais da série [exibida na TV Globo em 2013] do que do meu livro. O final era meio frouxo no papel, e na TV eles melhoraram. Já o Ao som do mar, que considero meu melhor romance, ninguém quis filmar ainda.

P. A indústria fonográfica, em que você atuou tanto tempo, mudou muito na última década. Como você vê essas mudanças?

R. Sempre lembro do David Bowie, na época da briga ao redor do Napster, opinando sobre o futuro da música. Ele falou: “A música é uma commodity. Você vai ter em casa, como tem TV a cabo, água, energia elétrica. Você gasta, você paga”. Há 15 anos. É exatamente o que estamos vivendo.

P. Essa pode ser uma vantagem. E a desvantagem?

R. Com a globalização e a digitalização, o acesso à música de todos os países se ampliou muito. Para superar tudo o que já foi feito em termos musicais, a pessoa tem que fazer melhor ou diferente disso. É uma barreira quase intransponível criativamente. Ao mesmo tempo, com essa toda essa facilidade, a música se banalizou. Está no banheiro, no elevador, no avião... em todo lugar tem música. Até os anos 70, 80, a música tinha a ambição de conquistar uma transcendência, de marcar uma época. Tinha ideias, depois foi se banalizando.

Nelson Motta.
Nelson Motta.Eduardo Zappia

P. Antes, as gravadoras fabricavam os sucessos, e você participou disso, criando hits. Qual é a lógica do pop hoje?

R. O disco se transformou num instrumento de publicidade e promoção do artista. Não dá mais para imaginar o disco como um negócio lucrativo. Quando faz um baita sucesso, vende 30.000 cópias. A valorização do show ao vivo é uma consequência disso. O cara dá as calças para ver o artista ao vivo, porque a experiência foi muito valorizada. Por esse lado, é bom para o artista. A meu ver, música acontece mesmo ao vivo. Você vê de perto, o artista pode errar, tem emoção... O registro é uma forma secundária. Isso é preponderante hoje, coisa que nunca foi.

P. No fim, você se sente otimista ou pessimista em relação à música hoje? Está soando pessimista.

R. Estou soando meio desinteressado. Faço muitas outras coisas que me dão prazer. Coisas que não conheço direito ainda e que fico feliz em aprender, como os musicais de teatro. Nunca tinha feito teatro na minha vida. Hoje faço. Eu vivi tempos tão fabulosos da música, dos dois lados do balcão. Vivi plenamente o apogeu da indústria do disco, que foi uma das coisas mais poderosas e invejadas. Depois tive várias casas noturnas no morro da Urca. Todo esse rock’n’roll brasileiro começou lá. Vivi tudo isso intensamente, não sobrou nada. É compreensível que fique meio desinteressado das coisas novas. Acompanho algumas coisas, mas poucas. Gosto de novidade, mas não fico mais procurando.

P. O que você opina sobre o conturbado clima político do país?

R. Acho que andam acontecendo umas coisas loucas. Sobre este livro, teve uma leitora que escreveu um comentário assim: “Nem li ainda, mas não gosto mais de ouvir tal compositor. Acho que ele não devia estar no livro, porque é um golpista”. Parece piada. Outra pessoa me escreveu dizendo que estava “decepcionada”, porque incluí gente como Chico Buarque, com Apesar de você, e Geraldo Vandré, com Para não dizer que não falei das flores, num livro que chama 101 Canções que Tocaram o Brasil... Louca! É assustador. Se você tenta ter uma posição de equilíbrio, apanha dos dois lados.

P. Então você acha que estamos encaretando, do ponto de vista da música e também da política?

R. As coisas costumam estar ligadas, né? A trilha sonora dos anos Collor era o sertanejo. Foi o apogeu do gênero. Depois veio o sertanejo universitário, que é pior ainda. Era a música perfeita para a época.

P. Por quê?

R. Pelo que tinha ali de vulgaridade, de ostentação, de sentimentalismo, de marketing. Tenho lembranças terríveis do clima dos anos Collor. Na eleição do Lula e do Collor, fiz campanha para o Mario Covas. Não é do meu temperamento aceitar “é isso ou aquilo”. Quero uma outra coisa. Não gosto de polêmica, tento harmonizar as coisas. Às vezes me ligam para resolver problemas em shows e tal. Dizem: “Chama o harmonizer”. Aí o cara me chama, eu vou lá e organizo. Tudo fica tranquilo. É um dom que Deus me deu, sei lá. Na verdade, eu também fui casado sete ou oito anos com a Marília Pêra, então fiz um mestrado, um doutorado em estrelas. Aprendi a lidar com elas. Por isso, nunca tive problemas com ninguém. Me coloco a serviço do artista, faço o que é melhor para ele.

P. O que você opina sobre o prêmio Nobel de Literatura para Bob Dylan, que despertou polêmicas?

R. Sou superfã dele, isso é ponto pacífico. Agora... dizer que a letra de música é literatura é uma questão a ser discutida. Muitas letras não se sustentam no papel, talvez a maioria. E talvez as melhores músicas. Outras, sim. Muitas letras de Chico Buarque se seguram nesse sentido, como um poema. Mas não acho que a música do Dylan seja poesia cantada. Música não é um acessório, e a música do Dylan não é só um suporte para as letras dele. É uma integração perfeita de música e letra. Essa é uma característica da música popular, em que ele é o top, o pai de todos. Música é uma nova arte, típica do século XX.

P. Querem eliminar as fronteiras entre literatura e música?

R. Isso é discutível também. Teríamos que dar um Grammy para o Philip Roth, como eu li em algum lugar. Nesse sentido, é muito interessante. Mas ninguém leva mais o Nobel muito a sério... É mais um update. Quanto escritor para lá de obscuro já ganhou um Nobel e nunca mais deu em nada, sumiu. Quem ganhou no ano passado foi uma jornalista ucraniana, com um livro de reportagem. O Dylan está mais próximo da literatura do que uma repórter, na minha opinião. É um libertário.

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