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Coluna
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O melhor e o pior da humanidade

Na Colômbia convivem pessoas de nobreza incomum e inteligência com cínicos e manipuladores como Álvaro Uribe

Rebeldes na 10° conferência das FARC, em setembro.
Rebeldes na 10° conferência das FARC, em setembro.AP
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Colômbia diz ‘não’ ao acordo de paz com as FARC

Se Donald Trump acabar se tornando presidente o resto do mundo concluirá que os norte-americanos estão loucos. Se no plebiscito realizado no final de semana na Colômbia a maioria votar pelo “não” ao acordo de paz assinado entre o Governo e as guerrilhas das FARC, o que significaria um “sim” à continuação de uma guerra que durou meio século, o resto do mundo concluirá que os colombianos também estão loucos.

Uma vitória eleitoral para Trump confirmará minha suspeita de que a metade dos habitantes dos Estados Unidos são alienígenas. Trabalhei lá quase quatro anos como correspondente, percorri o país de ponta a ponta, e tive a impressão de que, mesmo que aquela metade fosse igual a outra metade em aparência, seus circuitos cerebrais eram diferentes do restante da espécie.

Não vivi na Colômbia, mas visitei o país meia dúzia de vezes nos últimos dez anos e passei a maior parte do mês de setembro aqui, visitando cinco cidades, falando com jovens e velhos, ricos e pobres, eleitores do “não” e do “sim”, e me expondo permanentemente ao acalorado debate nacional que o plebiscito causou. Minha conclusão: na Colômbia convivem o melhor e o pior da humanidade.

O melhor: uma porcentagem altíssima de pessoas que combinam inteligência incomum com extraordinária nobreza. Um exemplo entre muitos é o de um empresário chamado Aníbal Rodríguez, de 60 anos, que conheci na cidade sulista de Neiva. Expressa seus pensamentos com a eloquência típica dos colombianos de todas as camadas sociais; é sereno, lúcido e racional quando expõe seus argumentos a favor do “sim”. O que tem seu mérito já que foi sequestrado pelas FARC com sua filha de 15 anos em 2001, os dois presos na selva até sua libertação 39 meses depois. Sua família foi muito atingida pela guerra das FARC. Não só outras pessoas foram sequestradas, como sua irmã e seu pai morreram.

Suas principais razões para apoiar o acordo de paz? Uma, que prefere ouvir a verdade sobre o que as FARC fizeram quando, segundo as regras do acordo, forem obrigados a confessar seus crimes, do que sofrerem longas sentenças de prisão sem precisarem confessar nada. Dois, que vê mais valor em se comprometer com as futuras gerações, para que não sofram o que ele sofreu, do que ficar preso nos rancores do passado.

Outro exemplo do melhor da humanidade vem de Sergio Jaramillo, poliglota especialista em filosofia grega que, sem nenhuma ambição política pessoal, foi o incansável cérebro do governo colombiano nos quatro anos de negociações que levaram ao atual acordo com as FARC.

O pior da Colômbia: a violência selvagem personificada na figura histórica do chefe narcotraficante Pablo Escobar, exibida também pelos paramilitares da extrema direita, pelo próprio exército colombiano e pelas FARC. Traficantes, assassinos, recrutadores de crianças soldados, os dinossauros das FARC (Farcassauros?) continuaram sua luta absurda pelo paraíso marxista terreno um quarto de século depois que as demais guerrilhas latino-americanas de esquerda abandonaram as armas. Somente eles não se deram conta de que a Guerra Fria havia terminado e que sua utópica causa revolucionária já não tinha razão de ser. O exército guerrilheiro das FARC lembra o caso do soldado japonês que foi encontrado na ilha de Guam em 1972 ainda armado, sem saber que a Segunda Guerra Mundial havia terminado 27 anos antes.

Outro exemplo do pior da Colômbia é o ex-presidente Álvaro Uribe, um astuto político e brilhante orador mais motivado em sua virulenta campanha contra o acordo de paz pela vaidade pessoal do que pelo bem de seu país. Muito mais inteligente do que Donald Trump, mas tão inimigo da verdade quanto o norte-americano, é o caso clássico do cínico manipulador de massas que causou tanto dano à humanidade ao longo dos séculos.

O plebiscito de domingo estabelece uma disputa entre essas duas Colômbias. Qual das duas é o rosto que será exibido ao mundo? A caricatura violenta e desalmada que a maioria dos habitantes da Terra há meio século enxerga como a imagem real dos colombianos? Ou a do país rico em qualidade humana que nós estrangeiros que passamos um tempo aqui conhecemos?

Como aconteceu no referendo do Reino Unido pelo Brexit, mas com muito mais em jogo, os colombianos decidem que valores querem que os representem: a generosidade ou a mesquinhez, a audácia ou o medo, a racionalidade ou a ignorância. No mais essencial, o voto mais importante da história da Colômbia se reduz a uma eleição entre o passado e o futuro, entre um conceito de vida vingativo, envenenado e miserável e uma visão de país otimista focado em colocar à frente de tudo o bem-estar das crianças e dos colombianos ainda por nasce, e soltar o enorme potencial nacional que a guerra reprimiu.

A Colômbia, aproveitando a ocasião, tem a oportunidade de fazer um favor ao resto da América Latina, aos países ricos do Ocidente e ao Oriente Médio. Com tanta corrupção moral, com tanta xenofobia e terror, com tantos problemas sem solução à vista, um sim no plebiscito representaria uma vitória para a inteligência e a paz. A Colômbia, por tanto tempo sinônimo do pior, pode se transformar de um dia para o outro em um exemplo do melhor que o ser humano é capaz. Quem teria pensado nisso? A Colômbia poderia se transformar em uma luz para o mundo.

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