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Opinião
Texto em que o autor defende ideias e chega a conclusões basadas na sua interpretação dos fatos e dados ao seu dispor

O bom “madridista”

O fanático culé se preocupa com o time branco tanto ou mais até do que os próprios torcedores merengues

Rafa Cabeleira
Cristiano Ronaldo celebra um gol em Dortmund.
Cristiano Ronaldo celebra um gol em Dortmund.KAI PFAFFENBACH (REUTERS)

Com o passar dos anos, seja de forma voluntária ou por mera inércia, fui abandonando uma série de pequenos prazeres que adoçavam a minha existência sem quase me dar conta disso, principalmente aqueles que se baseavam em um estado físico invejável e na temerária falta de responsabilidade e senso comum tão frequentes em nossa tenra idade. Uma tosse forte e incômoda me convenceu dos benefícios de abandonar o consumo de tabaco artesanal e da cannabis, o casamento fez diminuírem progressivamente os conflitos que eu tinha comigo mesmo e Dom Ramón, o gerente do banco, cuidou de me fazer entender que desperdiçar a minha baixa remuneração em cassinos on-line e fascículos colecionáveis de sobre qualquer merda não era a melhor forma de sustentar um lar decente e altamente hipotecado. Dessa maneira, eu me vi obrigado a buscar novas fontes de prazer, novos estímulos a baixo custo para contrabalançar uma vida tão sem graça que deixaria até mesmo as principais associações de bibliotecários e cobradores de pedágio indignadas.

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Sem dúvida, um dos hábitos substitutos que mais tem ajudado a levar adiante uma vida tão anódina é o de acompanhar os jogos do Real Madrid como se toda a minha vida dependesse disso, como se ele fosse o time do meu coração. Isso pode parecer contraditório e nada aconselhável, pelo menos para um torcedor do Barça, e, no entanto, tem sido algo mais rotineiro do que poderia parecer. O fanático raça pura do Barça, o “culé” de verdade, o old school, se preocupa com a imagem do time branco tanto ou mais até do que os próprios torcedores merengues, não, digamos, mais do que com a do seu próprio time, o que não deixa de ser uma prova evidente e maravilhosa do quanto um bom “barcelonista” não é outra coisa que não um “madridista” evoluído, um “madridista” consciente e decente, um “madridista” melhor.

Nesta semana que passou - para não irmos muito longe -, pudemos assistir a mais uma demonstração da tão admirável conduta dessa estirpe com a qual espero um dia conseguir me parecer para afastar, de uma vez por todas, qualquer vestígio de dúvida em relação às minhas verdadeiras afinidades. A indignação contra Cristiano Ronaldo por causa do gesto feio que dirigiu a Zinedine Zidane se transformou em um clamor de dimensão semelhante àquele que o nosso hino nacional menciona, com o “barcelonismo” definitivamente cansado do egocentrismo de um sujeito que só trouxe desgraças para o Real Madrid, e digo isso para sintetizar a coisa e não para ofender ninguém. É tamanha a paixão que depositamos na causa alheia que já não nos surpreendemos de como Neymar saiu barato, inclusive à custa do bom nome do clube, e com o fato de que a demissão mais desejada pelo povo azul-grená seja a de Florentino Pérez, não a de Josep María Bartomeu. Ser um bom “madridista” instalado no campo contrário é uma das pequenas coisas que descobri que me ajudam a saborear o dia a dia a custo zero: sem nenhuma dúvida, a droga mais barata e mais inofensiva que eu já consumi.

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