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Editoriais
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

A frágil Europa

Sem uma liderança clara e lealdades compartilhadas, o projeto não poderá se sustentar

Jean-Claude Juncker.
Jean-Claude Juncker.STEPHANIE LECOCQ (EFE)
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O presidente da Comissão Europeia, o luxemburguês Jean-Claude Juncker, vai apresentar na quarta-feira no Parlamento Europeu seu relatório anual sobre o estado da União. O formato do discurso e sua estética foram criados para serem iguais aos que acontecem nos parlamentos nacionais, onde uma vez por ano os Governos prestam contas aos representantes dos cidadãos, apresentam as grandes linhas de atuação que irão guiar suas ações durante o próximo ano e concedem à oposição a oportunidade de construir uma alternativa viável para as políticas em curso.

Apesar de essa mimese ser um pouco forçada, porque nem a União Europeia é um Estado nem a Europa é uma nação, nem a Comissão Europeia é um Governo estritamente falando, não é a artificialidade da ocasião que deve nos preocupar: no final do dia, todas as instituições políticas são construídas, e como tal precisam de seus marcos, rituais e símbolos para se estabelecer e se conectar com os cidadãos. Sendo importante a parte solene, a verdadeira questão que Juncker precisa solucionar, a parte em que deve convencer seu público, vai se concentrar em torno da relevância e capacidade da UE de responder aos problemas que preocupam os europeus.

Na Europa de hoje se impõem as soluções nacionais e a falta de solidariedade

Porque a realidade é que, mais um ano, a União Europeia está em um estado de fragilidade e desunião extremamente preocupante. Aos problemas que se arrastam há algum tempo na frente econômica, e onde, apesar da ação decisiva do BCE, domina o fraco crescimento e a persistência do desemprego, agora devemos acrescentar o choque provocado em junho pela decisão dos britânicos de sair da União Europeia. O auge dos populismos, que continua, com partidos antieuropeus ganhando cada vez mais representação política e cotas de poder e, até mesmo, como no caso do Reino Unido, conseguindo mudar radicalmente a percepção sobre os benefícios da União para o cidadão comum, criam uma ameaça muito séria no horizonte da integração europeia, tanto do ponto de vista da legitimidade do processo quanto de sua governança. Alguns Governos, do Reino Unido à Polônia pela Hungria e Eslováquia já cruzaram o Rubicão da insubordinação contra o projeto europeu e seus valores ou estão prestes a fazer isso, não devemos descartar que outros se juntem a esta tendência no futuro próximo.

Todo esse ambiente de desintegração política é apenas a consequência lógica de anos de crise econômica e, acima de tudo, de falta de respostas eficientes às necessidades reais das pessoas. E isso acontece em um contexto externo cada vez mais adverso no qual a União Europeia se tornou, por culpa da incapacidade dos seus Estados-membros de coordenar suas políticas externas e de segurança, interiores e exteriores, um ator sem peso nem personalidade própria, receptor passivo das decisões dos outros. A crise de asilo e refúgio, que não termina, nem o volume dos fluxos ou o número de vítimas, é o melhor exemplo de como a debilidade dos 28 países acaba forçando os europeus a aceitar compromissos que são incompatíveis com os princípios e valores que afirma defender.

A ameaça jihadista, os excessos autoritários de Putin e Erdogan, os refugiados afogados no Mediterrâneo, o auge do populismo xenófobo e a falta de crescimento econômico, todos esses problemas têm um elemento comum que os une: a falta de liderança e propósito comum, e o esgotamento das lealdades e solidariedades compartilhadas sem as quais o projeto europeu não se sustenta. Dos quatro motores da integração europeia, nenhum deles funciona como antes: a Alemanha de Merkel continua obcecada com a austeridade orçamentária, o que a torna politicamente incompatível com a Itália de Renzi e a França de Hollande, cujas preocupações existenciais estão em lugares muito diferentes, isto é, na reforma institucional e no crescimento econômico no primeiro caso, e a segurança interna e o desafio de Le Pen no segundo. E da Espanha de Rajoy só se pode dizer que não está nem a se espera nada dela. Nessas circunstâncias, não se deve esperar que o presidente Juncker seja capaz de impulsionar a União nem que a Alta Representante Mogherini consiga que a Europa fale ou atue com uma só voz no mundo.

O desafio de Juncker é explicar por que a União Europeia não resolve os problemas que está enfrentando

Os propósitos de relançar a economia através de um plano de investimentos, completar a integração das políticas de imigração e asilo, acomodar o Brexit e relançar a política de defesa comum são louváveis, mas estão tão desgastados que qualquer inteligência se ressente ao ouvi-los novamente. A dura realidade é que a Europa está pendendo do fio desenhado por Mario Draghi, com o BCE transformado na última trincheira que nos separa do abismo. O verdadeiro desafio de Juncker e daqueles que o apoiam — conservadores, liberais e socialistas — não é explicar que Europa precisamos, mas por que parece impossível alcançá-la. A fraqueza da Europa de hoje não está na falta de ideias, mas na incapacidade de implementá-las.

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