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As lições do alpinista dado como morto na “maior tragédia do Everest”

‘Se você não aprende nada depois de morto é porque está fazendo algo errado’, diz Beck Weathers

Beck Weathers durante sua expedição ao Monte McKinley, ou Denali (Alaska), em 1989 / Trailer do filme ‘Evereste’.
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Beck Weathers morreu no dia 10 de maio de 1996 no Everest, deitado de bruços sobre a neve, mais de 8.000 metros de altitude. Quatro anos mais tarde, escreveu o livro Deixado para Morrer, (Ed. Intrínseca). O caso dele, que fica entre o milagre e o mistério, é parte da história interna daquele que viria a ser chamada de a “maior tragédia do Everest”. Naquele fatídico dia de maio morreram realmente 9 pessoas e um dos sobreviventes, Jon Krakauer, assinou o sucesso editorial No Ar Rarefeito (Companhia de Bolso) que inspirou o filme Evereste, lançado no Brasil em 2015. Beck Weathers (EUA, 1946) perdeu o braço direito, os dedos da mão esquerda e o nariz. Em troca, recuperou sua vida familiar e endireitou uma vida errática.

Pergunta. Passaram-se 20 anos desde a tragédia no Everest que mudou sua vida. Quando olha para trás, para aquela época, o que sente?

Resposta. Olhando para trás, não tenho a impressão de que passaram 20 anos, parece que foi ontem. Eu provavelmente repassei o que aconteceu quase diariamente por causa do impacto que teve na minha vida. Não olho para trás com uma sensação de tristeza. De fato, as mudanças que provocou em mim são tais que os últimos 20 anos foram os mais interessantes e gratificantes. Os melhores anos da minha vida. Sinto-me em paz sobre como tudo aconteceu e sobre o significado desse evento na minha vida.

P. O seu livro é muito honesto e corajoso. Precisou escrevê-lo para organizar o seu mundo interior?

A coisa mais difícil quando voltei para casa foi preservar o meu casamento. Ele tinha se desfeito. Tive de convencer minha mulher de que ela e meus filhos eram minha prioridade

R. Quando escrevemos o livro percebi que provavelmente o que meus editores queriam era outro No Ar Rarefeito, mas assumi que Jon havia feito um excelente trabalho descrevendo os detalhes da escalada, e da minha parte não tinha nada a oferecer com relação ao quem, o que, quando, por que e como. O que me interessou transmitir é o que leva as pessoas a irem ao Everest e que preço pagam por esse esforço. Sem dúvida, cada vez que você examina a sua vida aprende lições, e eu acho que, nesse sentido, quando você chega a tal grau de introspecção é verdade que acaba entendendo melhor você mesmo.

P. O que foi mais difícil no seu retorno do Everest?

R. A coisa mais difícil quando voltei para casa foi preservar o meu casamento, que, basicamente tinha se desfeito. Sempre amei Peach, minha mulher, e continuo a amá-la (imensamente), mas uma das grandes verdades é que simplesmente amar alguém não é suficiente. Você tem que estar lá quando ela precisar, e isso é provavelmente o aspecto em que eu me dava pior, então tive de convencer Peach de que, não importando o que acontecesse no resto de nossas vidas, no futuro estaria sempre lá para ela e as crianças e que seriam minha prioridade número um para o resto da minha vida. Tive de ter certeza que ela estava entendendo que eu estava dizendo isso a sério para voltar a ter a confiança dela. Isso foi o mais difícil.

P. Quais foram as motivações íntimas que o levaram a querer escalar o Everest?

R. Bem, as razões pelas quais eu queria escalar o Everest eram muito diferentes quando comecei a praticar escalada em relação a quando o escalei de verdade. Meus esforços iniciais no montanhismo foram, em primeiro lugar, uma combinação de superar o meu medo de altura e o desafio que isso implicava e, claro, como descrevo no livro, uma grande parte do esforço físico necessário para a preparação da escalada foi uma tentativa de enfrentar a depressão que sofria havia mais de vinte anos. É verdade que quando você começa, o que mais quer são esses picos porque fazem você se sentir bem. Mas quando cheguei ao Everest, tinha superado quase tudo isso e chegado a um ponto em que simplesmente adorava escalar. Adorava estar lá, adorava as pessoas e a cultura, adorava o desafio. É claro que eu estava tentando completar o desafio dos sete cumes, e parte da razão pela qual se escala o Everest é completar o desafio. Mas quando eu fui em 96, com 50 anos, as probabilidades de chegar ao topo eram muito baixas. Então, não viajei com a ideia de que chegar ao cume era a única coisa que faria a viagem valer a pena.

P. Quantos clientes que pagam para escalar o Everest consideram que viajam movidos pelo ego?

R. O papel do ego no Everest é grande. Todos os que vão para lá são pessoas altamente motivadas por muito tranquilas que pareçam. A quantidade de trabalho requerida para estar preparado fisicamente e obter as habilidades necessárias implica em muita determinação; e o ego é uma parte disso tudo, embora varie muito de uma pessoa para outra. Eu acho quanto mais você escala, menos te motivam a “febre do cume” e o ego. Você está lá simplesmente porque desfruta das montanhas e da experiência de estar com outras pessoas que compartilham a mesma paixão.

P. Não lhe parece injusto que Anatoly Boukreev tenha sido apontado como o único culpado pela tragédia, junto com a terrível tempestade que se abateu no Everest? Depois de ler todos os testemunhos possíveis, parece claro que nem Scott Fischer nem Rob Hall planejaram bem a subida final, quando faltou oxigênio engarrafado, corda, os horários não foram respeitados, etc...

R. Do ponto de vista da tempestade, se não houver tempestade não há problema. As decisões teriam sido tomadas por pessoas com muita experiência que teriam lido a situação e a tratado de forma adequada. As decisões que Scott e Rob tomaram juntos foram provavelmente uma das razões, além da tempestade, do que aconteceu. Agora, se Anatoly tivesse ficado com o grupo e tivesse feito o seu trabalho, as coisas teriam sido diferentes? Não tenho a menor ideia. Mas mesmo com a decisão que tomou de escalar sozinho naquele dia, ele não foi responsável pela tempestade. Quando ele percebeu o que tinha acontecido, fez o que pensava que era seu dever: resgatar quem estava na sua equipe, e estou quase certo de que eles não teriam sobrevivido caso ele não tivesse voltado para ajudá-los.

Retrato de família com Beck Weathers, a mulher Peach e os filhos do casal, Beck II e Meg.
Retrato de família com Beck Weathers, a mulher Peach e os filhos do casal, Beck II e Meg.

Cada um de nós tem seu próprio papel no que aconteceu. Minhas decisões me colocaram lá, meus pés me levaram à montanha, e se você não consegue reconhecer isso e reconhecer suas próprias decisões e o seu papel no que aconteceu com você, a verdade é que você não deveria estar lá. Depender de outros para que te salvem a vida provavelmente não é a melhor estratégia nesse tipo de ambiente.

P. A partir da sua experiência no Everest, duas novas tragédias ceifaram as vidas de 30 sherpas nessa mesma montanha entre 2014 e 2015, tragédias que foram rapidamente esquecidas e que não mereceram filmes ou livros. O que pensa disso?

R. Em 1996, quando estava na montanha e mesmo depois, nunca imaginei que minha história seria o centro das atenções. Na montanha as pessoas sempre se machucam ou morrem, é um ambiente perigoso e você faz o que pode para reduzir esses riscos. Você não pode fazer desaparecer todos os riscos. Sem dúvida, existem certas coisas que chamaram a atenção na nossa circunstância. O fato de termos repórteres cobrindo a nossa história diariamente, de ela ter sido contada pela internet e, claro, o fato de Jon ser um escritor tão bom e ter feito um livro tão fascinante que conta essa história: No Ar Rarefeito. A combinação desses acontecimentos chamou a atenção das pessoas. Essas vidas e essas tragédias não foram mais importantes do que outras, e certamente não mais do que a morte de um sherpa, especialmente em 2014, durante as avalanches na Cachoeira do Khumbu. Os sherpas, pelo fato de estarem nas montanhas todos os dias, correm maior risco e isso fez com que muitos deles tenham morrido. Penso que as pessoas não entendem isso muito bem e não entendem o grande impacto que essas mortes têm em suas famílias e na comunidade que os rodeia. Essa situação é realmente terrível e cada vez que acontece é algo destruidor.

Conviver com a depressão durante vinte anos colocou minha força de vontade à prova. Foi simplesmente pura agonia. Era uma questão de aguentar o dia a dia

P. O senhor afirma em sua obra que a “depressão regeu” sua vida. Apesar disso, era um médico de destaque e tinha uma família, muito mais do que a maioria consegue. Como fez isso?

R. Conviver com a depressão durante vinte anos colocou minha força de vontade à prova. Estava muito centrado em quão maravilhoso seria se meu sofrimento desaparecesse, apesar de não parar de pensar em quanto sentiriam a minha falta. Foi pura agonia, simplesmente. Era apenas uma questão de aguentar o dia a dia. Finalmente me livrei da depressão quando tinha uns quarenta e cinco anos. Não sei por que a tive e não sei por que se foi, mas acima de tudo ter de precisar lutar tanto para seguir adiante provavelmente me ajudou a superar o que aconteceu no Everest. Sinto-me muito privilegiado, e sem dúvida sempre fui uma pessoa muito motivada e centrada, e talvez minha depressão tenha sido parte disso.

P.O senhor é muito duro consigo mesmo em seu livro, descreve a si mesmo como alguém infeliz e egoísta, distante da mulher e dos filhos. O que o fez mudar? Como foi o processo?

R. É verdade que fui muito duro comigo mesmo no livro. Tentei ser muito sincero. Se você não está disposto a se revelar, não escreva um livro. Acredito que ao edulcorar sua existência, não está criando nada de bom. Suponho que também ser duro consigo mesmo ajuda a suavizar o remorso, talvez por ser um sobrevivente ou pelo preço que sua mulher e filhos pagam enquanto você vai atrás de seus próprios interesses. É verdade que a depressão torna você um ser infeliz e reconheço que meu hobby, o alpinismo, foi uma atividade muito egoísta. Você vai escalar sozinho e deixa sua família com um grande estresse. Se você não aprender nada depois de morto é porque está fazendo algo errado. As mudanças físicas às quais fui submetido, a perda de certas partes de meu corpo, mudaram minha perspectiva e me dei conta de que se não mudasse ficaria sozinho. Perderia minha mulher e meus filhos, a quem amo tanto. Isso teria sido devastador. Sem dúvida tinha muito medo de me deprimir outra vez. Decidi ser muito otimista durante um tempo e encontrar e desfrutar de algo bom todo dia, algo que não poderia ter feito se tivesse me dado por vencido.

Pensei que devido à depressão e por ter pensado em me suicidar não me importaria morrer, mas, quando o momento chegou, me dei conta de que não estava preparado

P. Sendo alguém que pensou seriamente em suicídio, não lhe parece irônico o milagre de seu despertar no Everest?

R. A ironia de lutar com tanta força para voltar e sobreviver no Everest é algo que não me passou despercebido. Pensei que com a depressão, e pelo fato de ter pensado seriamente em suicídio durante tantos anos, não me importaria morrer. Sabe?, viver uma vida intensa, morrer jovem, deixar um corpo em forma. Mas quando chegou o momento de morrer de verdade, me dei conta de que não estava preparado e, recordando esse momento, vejo em minha atitude durante anos a grande contradição sobre a morte: que seria algo pacífico para mim. De fato, lutei como louco para que não acontecesse comigo, então imagino que meu caso é realmente uma grande ironia.

P. Que espaço o montanhismo ocupou em sua vida desde sua volta do Everest?

R. Apenas por intermédio dos outros. O que não matei, feri, então já não me dou bem com o frio. Voltar às montanhas mesmo que seja para olhá-las e desfrutar de sua beleza não vai acontecer. É verdade que acompanho as peripécias de certas pessoas que conheci durante minha vida. Mesmo assim, eu já estava chegando ao fim de minha carreira no alpinismo. Escalei o Everest com cinquenta anos e tinha passado os dez anos anteriores escalando seriamente, mas há muito mais coisas para fazer na vida e mais experiências a ter, outros lugares a visitar. Adoro escalar e não me arrependo de tê-lo feito, porque a vida é para ser vivida.

P. Jon Krakauer afirmou recentemente que ir ao Everest foi um dos grandes erros de sua vida e que desejaria não ter feito isso. Tem a mesma opinião?

Beck Weathers em Kathmandu (Nepal), poucas horas depois de ter sido resgatado, recebe a ajuda do irmão para beber.
Beck Weathers em Kathmandu (Nepal), poucas horas depois de ter sido resgatado, recebe a ajuda do irmão para beber.

R. Sim, sei como ele se sente. Acredito que a experiência o persegue. Eu nunca me senti assim, nunca tive pesadelos, flashbacks ou estresse pós-traumático, nem nada parecido. Para mim foi algo que aconteceu e que mudou minha existência. Mas em geral me mudou para melhor e teria de dizer que voltaria sem pensar duas vezes porque ganhei muito mais do que perdi, mesmo sabendo quanta dor e sofrimento causou a mim e a minha família. No geral, essa tragédia salvou minha vida familiar e me deu uma perspectiva da vida e uma paz que antes não tinha. Sempre vivia no futuro. Quando conseguia algo, em seguida me colocava outra meta. Quando alguém vive assim, vive para algo que ainda não aconteceu. Agora tento viver no presente e desfrutar de cada dia. Viver assim é mais gratificante e agradável.

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