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Rico Dalasam: “O rap é homofóbico, mas também é grande”

Rapper paulistano abre caminho na música com versos pop e provocadores sobre ser jovem, negro e gay

Rico Dalasam em uma rua de Perdizes, em SP.
Rico Dalasam em uma rua de Perdizes, em SP.Lilo Clareto
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Foi tudo muito rápido. Em menos de dois anos, Jefferson Ricardo da Silva (São Paulo, 1989) extrapolou as fronteiras de Taboão da Serra, na periferia de São Paulo, onde era apontado na rua por causa das roupas e do cabelo diferentes, para se tornar famoso como o rapper Rico Dalasam no país inteiro. O nome artístico – quase um alias de guerra – é a abreviação de Disponho Armas Libertárias A Sonhos Antes Mutilados, frase que, para ele, “é uma definição muito clara” do que faz.

O que faz Dalasam é música sobre ser jovem, negro e gay numa sociedade como a brasileira, de oportunidades desiguais. Seu single Aceite-C saiu no fim de 2014, mas foi assado em forno brando enquanto ele crescia, alheio à formalidade da escola e ganhando seu próprio dinheiro como cabeleireiro desde os 13 anos. Também enquanto frequentava as famosas batalhas de MC da Santa Cruz, de onde saíram rappers como Emicida, Rashid e Projota, entoando seus versos pop e provocativos. Esse rap, cujo vídeo foi visto centenas de milhares de vezes e que lhe rendeu a etiqueta de “o primeiro representante do queer rap no Brasil”, incita as pessoas a se assumirem da maneira que são. Ele, incluído.

Com espaço conquistado, o filho de dona Ana gravou então o primeiro disco. Organga saiu oficialmente em meados de julho deste ano, e outra vez o nome escolhido vem com um mote detrás: “o orgulho que vem depois da vergonha”. É bem aí que Rico Dalasam se encontra: fora de vários armários que nunca ocupou por vontade própria, gozando o orgulho conquistado e com um novo hit, Esse close eu dei.

Pergunta. Você está sendo chamado de “o primeiro representante do queer rap no Brasil”. Mas esse é um gênero que ainda não existe aqui. Ou existe?

Resposta. Na nossa música, sempre que um alguém começa a fazer algo, dão um nome para isso. Então me deram um também. Mas eu passei muito tempo, e ainda é assim, sem sentir que pertenço a nenhum movimento. Gosto muito de rap, mas a etiqueta de rapper não me coloca plenamente no mesmo lugar que outros rappers. Não me tratam igual. Tem lugares onde não vou tocar nunca, que não tratam um queer rapper como algo legítimo. Também não é o caso de pegar artistas que falam de gênero e dizer que pertencemos a uma geração X ou Y. Quem faz isso em geral é alguém que não sabe como é a nossa existência. É uma pessoa hétero, branca, que não faz ideia do que é você ser um jovem negro do Brasil profundo, vindo de uma periferia... Não sou nada. Sou Geração Dalasam.

Lilo Clareto

P. Ao mesmo tempo, você está querendo fazer alguma coisa. Dentro do seu projeto, mesmo sem necessidade de um rótulo, onde você quer chegar?

R. A música sempre dá a sua colaboração, positiva ou negativa, ao tempo em que ela passa a existir. Nesse nosso agora, fazer uma música na qual as pessoas que são invisibilizadas sempre se veem é o meu trabalho. É fazer você se ver. Quando não estou cantando, minha imagem também está falando. Isso é representar. Um dos grandes fatores da nossa confusão de identidade, no Brasil, é que a gente não se vê representado. Você liga a TV, mas não vê pessoas com características da maioria da população.

P. Para quem você compõe suas músicas?

R. Componho para mim, né? Não tem como pensar “vou fazer uma música para tal galera”. É caô, você já perdeu aí o espírito de muita coisa. Pode funcionar na indústria do pop, onde já sabem o que funciona. Mas a gente não sabe o que dá certo, porque a gente deu errado a vida inteira. Acredito que posso fazer uma música na qual eu me veja. E se houver pessoas que se veem em mim, vão se ver na música. É aí que eu consigo ter uma estimativa de alcance que meu trabalho pode ter.

P. De que maneira você chegou na música e no rap?

R. Meu irmão mais velho foi um pai para mim. Sempre que pôde, quis me inserir numa prática artística, inclusive para não me ver indo para a rua... Assim, cheguei na música. E eu tinha um amigo mais velho, o Luciano, que escrevia uns raps. Ele me apresentou uns discos que, para mim, são essenciais, me explicaram o que é o rap e a sua essência. São o Born again, do Notorius Big, o God’s son, do Nazir Jones, e The Miseducation, da Lauryn Hill. Se você não ouvir nenhum disco além desses, já vai ter conseguido entender a essência do rap que sai das ruas de Nova York.

P. E o que te atraiu desse universo?

Conheço a obra do Caetano hoje. Na minha casa não tocou, e a culpa não foi minha, nem da minha mãe

R. É você não ter que mudar o jeito que fala para se comunicar com as pessoas. Assim é o rap, o funk... A música que foge do coloquial e que se expressa de uma maneira culta é muito feita para as elites. Conheço a obra do Caetano hoje. Na minha casa não tocou, e a culpa não foi minha, nem da minha mãe. E, num momento em que eu não me via em nada, tinha o rap. Não era MC ainda, só ouvinte. Eu escrevia umas letras, aí vieram as batalhas de MCs, que comecei a frequentar, até ter coragem de participar. No começo, entrei muito arisco... com medo de as pessoas terem uma percepção muito clara sobre mim, e eu sofrer algum tipo de represália.

P. Nessa época, você já se assumia como homossexual?

R. Sim. Não é que eu estava vivendo de música e depois me assumi, tipo o Ricky Martin. Nem mudei meu rap porque me descobri gay, me libertei... Sempre cantei o que queria. Até que um dia alguém me escalou na batalha de rima, e aconteceu. Falei disso. Só que eu ainda não tinha segurança de ficar no palco, de me ver como MC, fazer show. Fui para o estúdio gravar um rap, fiquei ensaiando... e aí veio o clipe de Aceite-C, no fim de 2014. Em dez dias, ele entrou no radar das pessoas, e com isso mudou muita coisa para mim.

P. Você nunca teve nenhum problema por ser gay?

Lilo Clareto

R. Sempre tive problema em colocar em paralelo todas essas minorias que se juntam na minha história. “Gosta de rap, mas é gay”. “É um jovem negro, mas gosta de estar em lugares de arte” (e lá os negros não estão). Eu recebo um olhar estrangeiro por existir nesses lugares. Meus amigos, quando eu era mais jovem, nunca queriam sair do bairro. Eu não entendia. Depois, quando comecei a andar pela cidade sozinho, passei a entender. Eu ia de Taboão para a Galeria do Rock e recebia aquele olhar. As pessoas tinham uma coisa de segurar a bolsa, porque minha presença remetia ao perigo. Ser gay não te salva disso. Ser tudo isso – jovem negro e gay – faz você se sentir tão morto...

P. Como foi no rap? É um ambiente machista.

R. O rap é uma foto 3x4 da nossa cultura. E ela é machista, homofóbica, reacionária... Mas o rap é grande, e a Internet faz nascer novos mundos em um clique. Fiquei muito tempo pensando em como chegar. Quando senti que tinha uma música de qualidade, me coloquei. Estava com muito medo? Sim, muito. Mas de algo maior, porque o rap são cinco festas de rap e sete, oito nomes... Por outro lado, ele é grande e atende públicos muito diferentes. Tem o rap do Haikaiss, do Emicida, dos Racionais, da Karol Conka... Pensei que podia ocupar um lugar e pronto. Quando o Mano Brown viu meu vídeo, já tinha mais de 100.000 views. Quando fulano vai ver, você já está no meio do circuito.

P. Você trabalha com moda e cuida da sua imagem. Que recado você passa por aí?

"O rap é uma foto 3x4 da nossa cultura. E ela é machista, homofóbica, reacionária... Mas o rap é grande, e a Internet faz nascer novos mundos em um clique"

R. Minha imagem diz que eu não me adequo. Já tentei pra caramba, mas me sinto menos. Sou cabeleireiro desde os 13 anos de idade. Quando vi que isso me dava um dinheiro sem ter que fazer currículo e bater na porta de alguém... rapidamente vi que dava para não ter patrão. Olhei para a condição da minha mãe, que teve 1.000 patrões que privaram a gente tantas vezes de estar junto, e encarei. Quando eu vi, tinha 18 anos, mas já ganhava bem numa coisa que eu amo, que é a beleza. Acho que a moda deveria ser apresentada ao mundo no sentido da antropologia, de como ela se dá na sociedade em que ela existe. Olhar para a roupa a partir do comportamento.

P. Qual é a história por trás do seu single mais recente, Esse close eu dei?

R. É uma música curtinha com um clipe que metralha a cabeça da pessoa. “Esse close eu dei”, além de ser um jargão, vem com um sentido de “isso eu garanti”. Na letra, falo que estou sumidão, mas que dei bold [apareci com destaque] na Vogue New York, que estou sempre no Buzzfeed... brincadeiras pop, sempre. Mas, no fim de tudo, dizendo que estamos entrando num tempo novo e que todos devem fazer as coisas que gostam com excelência. No fim, quando a gente vê que deu certo, que enchemos os olhos das pessoas de satisfação, a gente pode falar: “Esse close eu dei”.

P. Esse disco novo, Orgunga, tem muitas referências orientais.

R. Muitas. Tenho uma identificação muito grande com a cultura árabe... Dalasam tem sonoridade árabe e sempre me vi muito parecido com gente do Sri Lanka. Fui atrás desse universo, pesquisar. Vi que tem uma música oriental que acontece muito na mesma temperatura da música do Norte e do Nordeste do Brasil. Só que a escala árabe tem mais segredos, na minha percepção. A Beyoncé usa muito, e é o segredo da sonoridade dela.

P. Vivemos uma crise no país, e as pessoas estão assustadas. Como você se sente, fazendo carreira justo nesse momento?

R. A periferia sempre viveu em crise. A gente sempre deixou de comprar uma coisa para comprar outra. Nunca teve a vida plena que a gente sonha. Quando termina de mobiliar, o primeiro móvel que comprou está velho. Estamos vivendo um retrocesso? Sim. Mas se a crise levar a sociedade brasileira para o lugar onde a periferia viveu sempre, ainda assim ninguém vai sentir o que sentimos a vida toda.

P. Retomando a ideia inicial, você sente que está puxando uma nova corrente no rap brasileiro? Acha que há outros seguindo você?

R. Para fazer rap, você precisa de horas de voo. As pessoas viram que não cheguei para depois sumir aí no mundo das polêmicas. Estou tentando fazer carreira, e isso inspira um monte de gente a fazer outras artes, inclusive, mas de características muito parecidas – questões de gênero, localização geográfica e cultural e raça. Você vê uma galera, e ótimo, maravilha... Só deem os créditos.

P. E o que a pessoa faz depois de atingir o “orgulho depois da vergonha”?

R. Agora, você está na dimensão do voar, né? Chegou a hora do voo. Mas voar também tem suas regras, não é só bater asa, não.

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Rico Dalasam em ensaio de divulgação do disco Organga.
Rico Dalasam em ensaio de divulgação do disco Organga.Henrique Grandi

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