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Ouro em família na Cidade de Deus

A família paterna da judoca campeã olímpica fala da emoção quando ganhou o ouro na Rio 2016

Parte da família de Rafaela Silva, nesta terça-feira na Cidade de Deus.
Parte da família de Rafaela Silva, nesta terça-feira na Cidade de Deus.Leo Correa (AP)
Felipe Betim

Quando a judoca Rafaela Silva nasceu, seus pais moravam em uma antiga casa amarela na rua Jessé, na Cidade de Deus — onde todas as ruas têm nomes bíblicos—, com outros parentes. Seus avós paternos receberam as chaves da casa nos anos 60, logo após a comunidade ser construída pelo Governo do Estado para reassentar os moradores removidos de várias favelas do Rio de Janeiro. Nela, criaram seus seis filhos e viram seus netos nascerem. Moravam todos debaixo do mesmo teto. A judoca viveu lá até os cinco anos de idade, até que seus pais, assim como tios e primos, buscaram outras casas, no mesmo bairro, para viver. Nesta terça-feira, entretanto, quase todos os Silva se reuniram na casa onde tudo começou. E o assunto não podia ser outro: o orgulho que sentiam da filha, neta, sobrinha e prima Rafaela após a conquista da medalha de ouro em uma Olimpíada celebrada em casa, no Rio.

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A vitória de Rafaela na Olimpíada encheu de orgulho uma favela que já foi considerada uma das mais perigosas do Rio, uma situação que foi retratada no filme que leva o mesmo nome, dirigido por Fernando Meirelles, o mesmo que assinou a direção da cerimônia de abertura da Rio2016. Hoje, no entanto, a situação pouco mudou, apesar da instalação de uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) no local. "Isso é conversa para boi dormir. Eles falaram também de UPP social, mas olha onde você tá pisando... Na merda", diz um membro da associação de moradores da comunidade, que resume a situação como "horrível" e aponta para um bueiro com esgoto vazando. No mesmo dia em que a judoca ganhou o ouro e as pessoas saíram de suas casas para soltar fogos, policiais e traficantes se enfrentaram mais uma vez. Segundo o relato de vários moradores, até as 18h a situação é tranquila. Depois, "só Deus sabe".

Apesar da euforia do ouro e da violência do chumbo, nesta terça-feira as crianças brincavam pela rua e os comércios locais funcionavam normalmente como se nada tivesse acontecido. A vida segue. Para chegar à casa amarela onde Rafaela viveu, é preciso atravessar uma longa rua: a direita, um rio que emana um fortíssimo cheiro de esgoto; a esquerda, quadras de futebol e várias crianças, algumas com uniforme, correndo pela rua com a bola na mão. Ao chegar na rua Jessé, quase toda a família de Rafaela está na rua.

"Eu queria ter vindo ontem, mas cheguei em casa umas duas e pouco da manhã e não deu. A emoção foi muito forte, mas graças a Deus deu tudo certo", resume Luiz Carlos Silva, pai de Rafaela, que se coloca como porta-voz da família. Para ele, sua filha estava diferente durante a luta desta segunda. Mais focada que o normal. "Nunca a vi daquele jeito. Durante a luta, quando ela passa perto da gente, chamamos e ela sempre olha. Mas ontem isso não aconteceu", lembra. "Acho que a ficha dela ainda não caiu não. Ela demorou para comemorar. Ficou parada e só depois caiu na real e saiu correndo".

Luis Carlos Silva, pai de Rafaela Silva, nesta terça-feira na Cidade de Deus.
Luis Carlos Silva, pai de Rafaela Silva, nesta terça-feira na Cidade de Deus.NACHO DOCE (REUTERS)

Luiz Carlos, de 53 anos e motorista de frete —dirige uma Kombi, presente de Rafaela—, conta sobre como começou a carreira de sua filha. Ela tinha sete anos quando foi matriculada, junto com a irmã Raquel, no instituto Reação, nessa época recém-montado pelo ex-atleta Flávio Canto para atender jovens de entre 4 e 17 anos —desde que estejam matriculados na escola. "Quando ela começou a lutar, tive que explicar para ela: 'Rafaela, você tá fazendo judô, mas não é para brigar na rua!' Eu sempre fui muito briguento. E aí ela puxou a mim, né", diz o orgulhoso pai. Ambas se destacaram desde o início e receberam todo o apoio do instituto para que se tornassem atletas. Nessa época, diz Luiz Carlos, foi preciso contar com a ajuda financeira dos professores de judô para que suas filhas pudessem viajar.

Rafaela, hoje com 24 anos, foi participando de cada vez mais competições importantes e sua carreira crescendo. Entrou na Marinha por meio de um programa dos ministérios da Defesa e do Esporte que incorpora atletas de alto rendimento. Passou a ter direito a vários dos benefícios da carreira militar, como 13º salário, plano de saúde, férias e instalações para treinamento. Além disso, foi beneficiada pelo Bolsa Atleta, um programa do Governo Federal, sancionado pela presidenta afastada Dilma Rousseff, que oferece uma ajuda financeira a atletas com chances de disputar medalhas e finais de campeonato. Sua irmã Raquel, hoje com 27 anos, tem um filho de 11 e também é militar e judoca.

Com toda essa estrutura, somada ao esforço pessoal de Rafaela, os resultados vieram. Em Londres 2012, a atleta participou de sua primeira Olimpíada, onde foi eliminada após aplicar um golpe irregular na adversária. "Ela não ficou incomodada por ter perdido. O que magoou foram os comentários racistas", explica Luiz Carlos. Uma das lembranças que guardará desses Jogos do Rio é o momento em que viu pela televisão a comemoração de milhares de pessoas que assistiam a luta. "Eu vi que todos torciam por ela, e não apenas a família", conta.

A mãe de Rafaela, dona Zenilda Silva, trabalha em um pequeno comércio de alimentos da família —também uma ajuda de Rafaela—, mas dessa vez ficou em casa, no bairro de Freguesia (ao lado da Cidade de Deus), descansando e fazendo o almoço. Mas ao seu lado de Luiz Carlos estão seu pai e sua tia sentados —mais velhos, ficam quase o tempo todo em silêncio—, além de vários irmãos e sobrinhos. Um deles é Diogo Silva, que puxa este jornalista para um lado e sussurra, como se estivesse contando um segredo: "Sabe, o tio Caca era muito briguento. Até porque a mãe dela, a dona Zenilda, é muito tranquila. Não podia mesmo ter puxado ela não", ri.

Ele acredita que o ouro de sua prima vai ser um legado para a favela onde cresceram juntos e que vai motivar outros pais a colocar seus filhos no esporte. "O esporte transforma a vida. É uma forma de desfocar de situações adversas que existem em comunidades carentes", explica este gari de 30 anos, formado em Educação Física. "É um conforto e uma tranquilidade para os pais verem seus filhos praticando esportes. E também para o desenvolvimento da mente e do caráter das crianças".

Todos da família viram a luta de um lugar diferente. "Cada momento que ela fazia ponto, a gente ia pra rua e era uma gritaiada danada", conta a mãe de Diogo. Já Cristiane Silva, de 40 anos, a irmã caçula de Luiz Carlos que ainda mora na antiga casa amarela, decidiu assistir a competição no instituto Reação, perto da Cidade de Deus, onde sua sobrinha Rafaela ainda treina. "Vários colegas estavam lá torcendo por ela, então havia um clima muito bom", conta, enquanto mostra o jornal de hoje com um pôster dela. Enquanto isso, a pequena Giovana, de quatro anos, brinca serelepe com outras crianças na rua, enrolada em uma uma canga com a bandeira do Brasil.

Já Luiz Carlos, o pai da judoca, espera ansioso para conversar com sua filha com calma. "Até agora só pude dar um papinho no ouvido para zoar ela. Disse: 'Oh, vamos dividir o prêmio!", ri. Segundo diz, Rafaela vai ajudá-lo agora na construção de uma cobertura para sua casa, para evitar infiltração. E, quem sabe, até instalar uma churrasqueira nela. Além da Kombi e de um comércio para a família, tanto Rafaela como sua irmã Raquel já ajudaram comprando televisão, geladeira e outras coisas para os pais. "Mas agora só espero que ela saia, se divirta e relaxe bastante".

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