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Tribuna
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Por que as polícias do Rio são tão violentas?

Apesar dos esforços em prol de uma reforma, o legado da ditadura ainda é uma realidade. A preocupação agora é que, com a crise nas polícias do Rio, os avanços se percam

Polícia reprime protesto em Niterói, nesta terça-feira.
Polícia reprime protesto em Niterói, nesta terça-feira.Leo Correa (AP)

É oficial: o Brasil possui o maior número absoluto de homicídios do mundo. O país também registra altas taxas de violência policial, fato apontado por ativistas do movimento norte-americano “Black Lives Matter”. A violência policial é uma realidade em todo o país, mas é mais acentuada no Rio de Janeiro, sede dos Jogos Olímpicos que se iniciam dentro de alguns dias. Embora diversos estudos de organizações internacionais chamem atenção para o problema, parece haver uma naturalização e aceitação dessa realidade por uma parcela importante da população carioca.

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As polícias do Rio de Janeiro estão entre as mais violentas do mundo? Segundo a Anistia Internacional e a Human Rights Watch, sim. Essas organizações acusam denunciam a polícia de frequentes envolvimentos em casos de morte e tortura de civis, antes e depois de detenções. As vítimas, em sua maioria, são homens negros e jovens. Os estudos também apontam para uma sensível piora à medida que os Jogos Olímpicos se aproximam.

A escala do problema é assustadora. E esse não é um fenômeno recente. Uma análise mais detalhada das estatísticas revela a perpetuação de dados inaceitáveis. Embora a situação seja ruim, o número de mortes decorrentes de oposição à ação policial – os chamados "autos de resistência" no eufemismo usado pela polícia – caiu na última década: entre 2003 e 2015, a redução foi de 46% no estado e 62% na capital. Entretanto, essa redução não deve ser usada para eximir as forças policiais de responsabilidade, mas para contextualizar o desafio.

O que explica essa redução? Pesquisadores apontam o início de melhorias significativas a partir de 2009, com a reorientação da dinâmica do policiamento no Rio (com as UPPs). Mortes relacionadas aos atos de resistência caíram em 85% nas áreas onde a nova abordagem foi introduzida. A estratégia consistia na alocação de agentes recém-treinados para determinadas áreas da cidade, muitas vezes pela primeira vez. Um ingrediente importante para o sucesso do programa logo após sua implementação foi a adoção de gratificações pagas em função da redução da criminalidade violenta.

Infelizmente, estes avanços duraram pouco. Desde 2014, os números voltaram a crescer: naquele ano, 584 pessoas foram mortas durante operações policiais e, em 2015, o número voltou a subir, chegando a 645. Em 2016, a tendência de alta permanece: de janeiro a maio, 322 civis foram mortos em intervenções policiais no estado do Rio de Janeiro, um aumento de 13% em relação ao mesmo período de 2015, de acordo com Instituto de Segurança Pública do Rio. De acordo com a Anistia Internacional Brasil, houve um crescimento de 135% em mortes causadas pela polícia no mês de maio quando comparado com o mesmo período no ano anterior.

Não foi apenas a violência policial que aumentou nos últimos anos, mas também a criminalidade violenta em geral. Foram 2.083 homicídios nos cinco primeiros meses de 2016, um aumento de 14% quando comparados com o mesmo período do ano anterior. As mortes de policiais em serviço também são numerosas. Em 2004, cerca de 191 policiais foram mortos no estado do Rio de Janeiro. Esse número caiu para o patamar mais baixo em 2011, com 93 mortos, voltando a subir, em 2015, para 98 mortos. Só neste ano, 65 policiais foram mortos.

Mas o faz a polícia ser tão violenta? Uma das razões é a exposição prolongada à violência, assunto tratado como tabu nos círculos policiais. Em 2014, a Universidade de Stanford coordenou uma pesquisa com policiais militares revelou que muitos tinham estado expostos a altos níveis de violência na infância. Aproximadamente 18% testemunharam ao menos um homicídio quando crianças; 25% foram agredidos quando crianças ou adolescentes; e 32% tiveram pelo menos um amigo ou familiar assassinado. É de conhecimento geral que a exposição prematura à violência pode influenciar comportamentos agressivos futuros.

Há diversos outros fatores contribuindo para a intensificação da violência policial. Um dos mais decisivos é a crise política-econômica que assola o Brasil – sobretudo no Rio de Janeiro –, que colabora para novos picos de criminalidade e uma redução significativa no gasto com segurança pública. No Rio, o orçamento de segurança pública sofreu um corte de 30% em 2016. Como resultado, programas inovadores – incluindo as UPPs – estão estagnados. As condições de trabalho e a moral dos policiais, que convivem com a incerteza com relação ao pagamento dos próprios salários, também sofreram um duro golpe.

Outro fato importante teve início em meados de 2013, quando Amarildo de Souza, morador da Rocinha, uma das maiores favelas cariocas, desapareceu, foi torturado e morto pela polícia pacificadora local. O caso, amplamente divulgado, desencadeou o que se chamou de “efeito Rocinha”, algo parecido com o “efeito Ferguson” norte-americano ou “efeito de vídeo viral”. Tem havido uma série de flagrantes e denúncias sobre violência policial no Rio de Janeiro nos últimos anos, frequentemente gravados em vídeo. Com a divulgação do abuso policial nas redes sociais, policiais se tornaram menos pró-ativos nas áreas mais perigosas. Por outro lado, a população também passou a hesitar em relatar crimes ou pedir ajuda à polícia, muitas vezes passando a praticar justiça com as próprias mãos.

Há um risco real de que os retrocessos continuem e a polícia do Rio retorne às táticas repressivas do passado. A polícia brasileira tem um histórico marcial. Antes da independência, em 1822, a responsabilidade pela manutenção da ordem pública era reservada a exércitos liderados pelo Estado. As reformas de Vargas, na década de 1930, levaram à criação de forças policiais que mantiveram a cultura militar. Com a Constituição de 1988 e seu Artigo 144, as polícias militares passaram a ser comandadas pelos governos estaduais.

Não podemos esquecer que, antes da redemocratização, a Polícia Militar era o braço armado do Estado brasileiro. Durante a ditadura, os policiais militares eram encarregados de reprimir manifestações de oposição e realizar operações clandestinas – inclusive assassinatos seletivos, desaparecimentos e tortura. Apesar dos esforços em prol de uma reforma, esse legado ainda é uma realidade. A preocupação agora é que, com a crise nas polícias do Rio, os avanços se percam.

Robert Muggah é diretor de pesquisa do think tank Instituto Igarapé.

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