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A professora que usou funk para ensinar Marx (e acabou repreendida)

Gabriela Viola, de Curitiba, fez com seus alunos paródia de 'Baile de Favela' e foi suspensa Vídeo viralizou e, para secretaria de Educação, professora usou música imprópria

“Os burgueses não moram na favela. Estão nas empresas explorando a galera. E para os proletários o salário é uma miséria. Essa é a mais-valia vamos acabar com ela”. Quando Karl Marx virou Baile de Favela, vídeo que viralizou nas redes sociais em menos de 24 horas de sua publicação, a professora de sociologia Gabriela Viola, que coordenou a paródia feita por seus alunos do ensino médio, foi afastada por uma semana da escola estadual Maria Gai Grendel, onde dá aula, na periferia de Curitiba, e agora fará seu trabalho com "acompanhamento pedagógico" especial. O episódio jogou mais lenha na fogueira no debate sobre o movimento Escola sem Partido, que acusa professores de tentarem doutrinar os alunos.

Ilustração de Marx feita por Fernando Vicente para o livro 'O manifesto comunista", editado pela Nórdica
Ilustração de Marx feita por Fernando Vicente para o livro 'O manifesto comunista", editado pela Nórdica

A confusão começou na noite de um domingo, em 3 de julho, quando a professora publicou, a pedido dos alunos (todos seus amigos no Facebook), o vídeo que eles gravaram em sala, resultado de um trabalho sobre Karl Marx, conteúdo que faz parte da grade curricular obrigatória do primeiro ano de sociologia do ensino médio. A paródia foi o resultado de um bimestre de aulas expositivas e uma série de debates. Os alunos escolheram a música e elaboraram a letra. No dia 4, a professora foi convocada para uma reunião com o Núcleo Regional de Educação, subordinado à Secretaria de Educação do Paraná, na terça seguinte. Lá, foi ordenada a ficar em casa até a próxima reunião de pais, sem data marcada para acontecer.

Oficialmente, a Secretaria de Educação do Paraná diz que o afastamento foi feito para preservação de sua integridade física, após usuários terem publicado ameaças à professora nas redes sociais. Comentários como “essa mulher merece uma surra” e “pobres crianças manipuladas” permearam as reproduções do vídeo pelo Youtube e pelo Facebook, onde foi originalmente publicado, no perfil privado de Viola. “Mas não recebi nenhuma ameaça direta. Nenhum pai reclamou comigo, ninguém me perseguiu. Pelo contrário, só me mandaram mensagens de apoio, após meu afastamento”, afirma. Já os alunos criaram a hashtag “VoltaGabi” e organizaram manifestações na escola. Após o protesto dos estudantes, a professora voltou para a sala de aula, depois de menos de uma semana.

A secretaria  insistiu em nota que "tomou as medidas necessárias para garantir normalidade das aulas". Também disse que "a professora receberá acompanhamento para auxiliar na sua prática pedagógica". O motivo seria o uso de conteúdo inadequado para alunos daquela idade (jovens de 15 ou 16 anos). Neste caso, o que desagradou a secretaria foi a escolha do Baile de Favela enquanto música de trabalho. A assessoria disse, entretanto, que esse acompanhamento não tem o objetivo de virar "um policiamento de conteúdo".

“Eu moro no Tatuquara [periferia de Curitiba e bairro da escola] e sei que o estilo preferido aqui é o funk, e não a música clássica. Tratar o funk como um estilo inferior é etnocêntrico”, afirma Gabriela. A letra original, que a professora considera machista, também foi questionada e debatida. “Eu quis trabalhar com aquilo que os alunos já tinham de bagagem, dando um novo significado à música. Para mim, a educação deve respeitar a realidade do aluno”.

Teor ideológico

Viola insiste que o afastamento foi injusto e apenas fortaleceu grupos ligados ao movimento Escola sem Partido, ou “escola de um só partido”, como prefere chamar o grupo que pretende limar do currículo conteúdos considerados ideológicos. O movimento conseguiu emplacar três projetos de lei na Câmara - um deles, inclusive, propõe a criação do crime de “assédio ideológico”, prevendo multa e até um ano de prisão para professores que supostamente doutrinam alunos em sala. O Escola sem Partido vem conseguindo outras pequenas vitórias, como a exclusão do termo "gênero" do Plano Nacional de Educação, por considerar que a palavra se referia a uma questão de ideologia.

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O Escola sem Partido desrespeita a diversidade de pensamento na escola. A maioria dos ataques nas redes ao nosso vídeo vieram de pessoas defendendo esse grupo. Mas como gerar cidadãos críticos se eles não tiverem acesso à pluralidade de conhecimento?”, diz Viola. “Nas redes sociais, muitas pessoas apenas xingaram a mim e aos meus alunos, sem argumentos, como se eles fossem tábulas rasas, manipuláveis. Os alunos vem de uma realidade, de uma cultura. Eles não aceitam qualquer coisa que o professor diz, ao contrário do que a Escola sem Partido alega”, complementa.

O Sindicato dos Trabalhadores em Educação Pública do Paraná (APP) classificou o afastamento da professora Gabriela como ilegal. “O Núcleo não pode afastar ninguém sem antes abrir sindicância e apurar o acaso”, afirma Vanda Santana, secretária geral da APP. “Não adiantaria nada forçar a professora a ficar em casa. Se a ameaça fosse real, ela correria perigo assim mesmo”, alega. Para ela, o motivo do afastamento foi político. “O problema foi a música e a escola não soube lidar com a repercussão. Mas isso está dentro de um contexto mais amplo. Falta gestão democrática em todo o sistema de ensino, que hoje é autoritário e incapaz de lidar com as divergências”, diz.

Preconceito

A professora de 22 anos, que se formou em sociologia com bolsa do ProUni, defende que a escola busque maneiras de se tornar mais interessante que o Facebook. “Damos aula como no século XIX para alunos do século XXI. A sociedade é dinâmica e a escola precisa se adaptar", afirma. Viola garante que o afastamento não mudará sua metodologia de ensino. Esta, inclusive, não foi a primeira vez que trabalhou com paródias em sala de aula. Mas foi a primeira que gerou repercussão nas redes. Antes desse vídeo, ela publicou uma paródia da música sertaneja “Aquele 1%”, escrita pelos alunos de outra turma do primeiro ano do ensino médio, que falava sobre a mesma coisa, ainda que o nome do “pai do comunismo” não aparecesse.

Quando postou a paródia "Karl Marx é Baile de Favela" no Facebook, para que os alunos mostrassem o trabalho para os pais, Viola acredita que alguém tenha baixado e encaminhado para grupos de extrema direita. Ela afirma que na descrição do vídeo original, ela havia informado que o vídeo fazia parte de um trabalho sobre Marx. “O vídeo foi reproduzido sem essa descrição. Isso fez parecer que os alunos estavam entoando um hino comunista, ensinado pela professora”, relata.

Comentários do vídeo reproduzido na página "Direita Paulistana"
Comentários do vídeo reproduzido na página "Direita Paulistana"

A diretora da escola, Sônia Aparecida, nega que o conteúdo tenha sido um problema. Segundo ela, foram os pais que procuraram a escola para questionar o vídeo. “A letra original do funk não é bonita e os pais não gostaram da escolha dessa música. Mas a escola não é contra o trabalho da professora nem contra o conteúdo da letra que os alunos fizeram. Só acho que a professora poderia ter procurado a coordenação pedagógica antes de publicar o vídeo”, diz.

A professora diz esperar que seus alunos não fiquem tristes com a repercussão. “Eles são incríveis, fizeram um trabalho maravilhoso. Não quero que sintam vergonha de suas origens, da cultura de onde vivem. Os ataques foram direcionados a uma forma de pensamento, a uma ideologia, um reflexo da forte instabilidade econômica e política que estamos vivendo no país. Não foi pessoal”, diz.

Senador quer incluir Escola sem Partido em currículo. Entenda

Na última segunda-feira (18), o Senado abriu uma consulta pública para saber se os cidadãos endossam um projeto de lei de autoria do senador Magno Malta (PR), que pretende incluir o "Programa Escola sem Partido", sem defini-lo exatamente, na Base Nacional Comum Curricular, um documento que vem sendo discutido há um ano por especialistas e será o guia para ensino em todo país. Em 48 horas de enquete, as opiniões dos usuários estavam divididas, mas os que eram contra venciam por pequena margem: 52,7%.

Com a iniciativa, Malta embarca no Escola sem Partido, um movimento criado há 12 anos por um pai indignado com o professor de história da filha que começou a ganhar força no ano passado. Escola Sem Partido prega o "fim da doutrinação" nas escolas e têm se espalhado pelo Brasil com ajuda de políticos conservadores. Eles querem ainda levar a aprovação da Base Nacional Comum Curricular para as mãos do Congresso.

O movimento já ganhou bastante espaço em muitas esferas políticas. Segundo o grupo Professores contra o Escola Sem Partido, ao menos nove Estados, incluindo Rio de Janeiro e São Paulo, além do Distrito Federal e de diversos municípios, discutem projetos de lei aos moldes de um documento criado pelo movimento. Entre as propostas do projeto, há a determinação de que o poder público vede, especialmente, "a aplicação dos postulados da teoria ou ideologia de gênero" e diz que entre os deveres do professor está o respeito "ao direito dos pais a que seus filhos recebam a educação religiosa e moral que esteja de acordo com suas próprias convicções".

Educadores qualificam a iniciativa como uma "lei da mordaça" e dizem que, no fundo, as regras impõem uma censura dentro da sala de aula e prejudicam a formação de alunos críticos, já que eles perdem o acesso à diversidade de opiniões.

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