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Vaquinha sem fronteiras

Jovens carentes realizam o sonho de estudar em universidades no exterior arrecadando dinheiro pela internet

Fazendo bicos desde os nove anos, quando seu pai abandonou a família, Tales Cauim Aires não tinha muito tempo de sobra para ir à escola. O limite foi o primeiro ano do ensino médio. Abandonou as aulas no meio porque não conseguia conciliar os estudos com o seu primeiro trabalho com carteira assinada da vida, aos 14 anos. A empresa, um petshop, onde carregava sacos de ração e cuidava do estoque, ficava muito longe da escola. “Trabalhei muitas horas por dia, carregando peso, sem nem chegar perto do caderno”, lembra.

Tales Aires arrecadou 10 mil reais para estudar na Universidade do Algarve, em Portugal
Tales Aires arrecadou 10 mil reais para estudar na Universidade do Algarve, em PortugalEduardo Tavares

Foi com 20 anos que ele resolveu pegar no caderno novamente e concluir o ensino médio, estudando por conta própria para o Enem, pois sonhava em fazer faculdade um dia. Queria se formar no curso de assistência social, serviço que conheceu muito bem durante toda a infância, pois desfrutou da ajuda do clube de mães e de psicólogos de uma ONG localizada perto de onde mora, no Morro do Calisto, favela no bairro da Glória, em Porto Alegre. O jovem sabe da importância desse trabalho para a vida das pessoas do morro. Quer ser um agente multiplicador daquilo que recebeu. "Com a ajuda deles fiz cursos de padaria, marcenaria, informática. Tudo para fazer bicos e ajudar nas contas da casa, que minha mãe bancava como diarista", diz.

Em 2014, fez a prova do Enem e, no ano seguinte, obteve uma nota superior à que precisava para ganhar o diploma do segundo grau. Inscreveu-se em uma universidade federal no Estado e passou, mas nunca chegou a assistir às aulas, pois a grade era integral e isso o impedia de trabalhar. “Deixar de trabalhar nunca foi uma opção para mim”, conta Tales. Uma alternativa seria graduação a distância, a chamada EAD. Matriculou-se na Uniasselvi, na capital, e só teria de ir um dia na semana até a faculdade. Nos demais dias, o estudo era por meio de uma plataforma online. Aos 22 anos, portanto, começou a se aproximar mais de seu sonho.

No segundo semestre do curso descobriu, por um anúncio nas redes sociais, que universidades de Portugal aceitavam o resultado do Enem como nota para o vestibular. Fez inscrições online e, em fevereiro deste ano, soube que foi aceito, com bolsa integral, para o curso de assistência social da Universidade do Algarve, na cidade portuguesa de Faro. “Uma faculdade na Europa tonaria meu currículo muito mais forte para o mercado de trabalho”, acredita o estudante.

Ainda que o curso fosse de graça para ele, seria necessário levantar dinheiro para os custos da viagem, como visto e passagem, e os primeiros meses de moradia, tempo suficiente para que arrumasse um emprego para se manter. Calculou que precisaria, no mínimo, de 8.000 reais. Trabalhando com carteira registrada em uma padaria, e vendendo sanduíches na faculdade, poderia levantar algum dinheiro, mas não em tempo hábil: as aulas começam já em setembro.

Tales chegou a vender sanduíche natural para bancar viagem.
Tales chegou a vender sanduíche natural para bancar viagem.Eduardo Tavares

Conversando com colegas da faculdade, surgiu a ideia de pedir ajuda na Internet, por meio de uma vaquinha virtual. Cadastrou-se em um site especializado nesse tipo de serviço, contou a sua história, explicou por que precisava do dinheiro e pediu os 8.000 reais. “Fui sem expectativas. Se der certo, deu. O ‘não' eu já tinha”, afirma Tales. Mas não agiu sem um plano. Para divulgar melhor a sua iniciativa, foi até a redação do Diário Gaúcho contar a sua história, que foi publicada no dia seguinte. Em pouco tempo, ela foi replicada nas redes sociais e por outros veículos de imprensa.

A vaquinha, que começou em 15 de maio, já arrecadou 10.791 reais, 135% da meta. "O site fica com um percentual do que eu arrecado, mas o dinheiro extra vai ajudar muito a me manter na faculdade até arrumar emprego. A língua em comum é uma vantagem. Posso fazer qualquer tipo de trabalho", conta.

Tales ainda não arrumou as malas, mas já tem certeza que o sonho de virar assistente social vai se concretizar. "A comunidade sempre me apoiou, mesmo sem acreditar muito que seria possível. Na favela, fazer faculdade e ainda mais no exterior é uma coisa muito nova, ninguém acredita muito que pode acontecer. As pessoas não têm esperanças por falta de exemplos. Hoje, eu me tornei esse exemplo", orgulha-se.

Das ruas de Pernambuco à universidade do Canadá

Da outra ponta do país, em Pernambuco, o estudante Denis José da Silva, de 17 anos, também apostou na vaquinha online para realizar o sonho de chegar à universidade. Denis, que já é o primeiro de sua família a se formar no ensino médio, conseguiu ir além desse recorde: tornou-se também o primeiro a deixar o país.

O estudante foi aprovado em junho deste ano no vestibular de medicina da Universidade de Manitoba, no Canadá. Inscreveu-se na instituição quando, por meio de um programa do governo local, passou seis meses estudando inglês no país. O programa selecionou alunos de escolas públicas de Pernambuco que tinham os melhores desempenhos em sala para fazer um intercâmbio de língua estrangeira em países como Estados Unidos, Austrália e Espanha. Após um curso intensivo de inglês e uma prova de proficiência, na qual Denis tirou 9,6, ele foi selecionado para estudar no Canadá. Lá, morou com a mesma host family que he dará abrigo na nova empreitada pelo país e poderá trabalhar no hotel da host grandma.

Denis publicou foto de seu sofá na página do Facebook, para "quem não acredita que não tem dinheiro para viajar"
Denis publicou foto de seu sofá na página do Facebook, para "quem não acredita que não tem dinheiro para viajar"Rumo ao Canadá

Mas, se não fosse pelo programa, Denis não teria condições de conhecer o Canadá. A falta de dinheiro sempre foi uma constante na vida de sua família. A principal renda da família é a aposentadoria do pai e um auxílio do Bolsa Família. "Morávamos, meus pais e mais meus cinco irmãos, em uma casa de lona, debaixo da ponte. Lembro de acordar com queimaduras de lagartas, que caiam na nossa cama. Também lembro que costumávamos pescara camarões com tijolos, no rio onde tomávamos banho", relata.

Outra parte da infância ele passou em uma ocupação irregular. "Nos mudamos para uma quadra abandonada, no município de Ribeirão. Era ruim, mas já era melhor que morar debaixo da ponte. Nesses tempos, tínhamos que pedir esmola na casa das pessoas", conta. Denis chegou a morar de favor na casa de uma desconhecida, dos 6 aos 10 anos de idade. "Em uma dessas vezes que pedimos esmola, passamos na casa de uma senhora que estava assistindo Chaves na televisão. Pedi para assistir também. Como o programa terminou tarde, acabei dormindo lá. E assim foi indo, um dia após o outro. Acabei morando com ela por quatro anos."

Improvisar diante das dificuldades, portanto, é uma estratégia que o jovem tira de letra. A falta de dinheiro para estudar fora não foi obstáculo para ele. Incentivado pelos pais e pelos amigos, Denis se inscreveu numa vaquinha virtual, solicitando 8.000 para os custos básicos da viagem para o Canadá _um programa federal, o Ciência sem Fronteiras, fornecia bolsas para graduação, mas não há novas vagas desde 2014. Mas sua história fez tanto sucesso nas redes sociais que ele conseguiu arrecadar 370% do valor que pediu em menos de quinze dias, chegando a 29.600 reais. O jovem não tem a menor dúvida de como vai gastar o excedente: "Vou deixar o dinheiro para ajudar a minha família".

Essa intenção foi explicitada também na página da vaquinha online. "Quando eu atingi o valor que eu queria, mudei o texto da página, agradecendo todo mundo que contribuiu. Disse que eu já tinha, graças à ajuda das pessoas, conseguido realizar o meu sonho. Mas se eles quisessem continuar ajudando, o que sobrasse iria para a minha família", diz.

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