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Coluna
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Os brasileiros já sabem o que não querem

É possível que, nas próximas eleições, o Brasil ainda não saiba em quem votar, mas saberá em quem não votar

Juan Arias
Menina no Vidigal (Rio).
Menina no Vidigal (Rio).Marcelo Sayão (EFE)

É possível que muitos brasileiros, em meio à crise que vivem, ainda não saibam claramente o que desejam para o futuro de seu país, mas, certamente, sabem o que não querem. E essa consciência do que rejeitam já é um início de recuperação.

A advogada Alba de Oliveira Castro definia isso na minha página do Facebook com uma frase expressiva e incisiva: “Estamos exumando os cadáveres escondidos do passado”, escreveu.

Por algum tempo, a sociedade viveu anestesiada, sem saber que nos porões do poder existiam tantos cadáveres escondidos. Desde as primeiras manifestações populares de 2013, o país se conscientizou da necessidade de se libertar do que o impede de sair do atraso para empreender o caminho da modernidade. Ousaria dizer, da normalidade.

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As pessoas sabem hoje, com maior clareza, o que não aceitam, embora nem sempre saibam o que estão dispostas a aceitar. Mas, como dizia o Nobel de Literatura português José Saramago, uma sociedade livre e madura é construída, muitas vezes, “mais com o não do que com o sim”. Ele se referia ao não do protesto contra o sim da resignação.

Hoje, o Brasil, em meio à convulsão política e social que o abala, e que é tangível na efervescência das redes sociais, conhece bem um punhado de coisas que não quer.

Não quer, por exemplo, esse vulcão da corrupção em erupção, tanto na classe política (estima-se cerca de 500 políticos envolvidos) quanto no mundo dos negócios. O não à corrupção é quase um hino nacional.

Como consequência, o Brasil não quer hoje nenhuma tentativa de amordaçar os juízes. Certos excessos poderão, às vezes, ser criticados, mas a Operação Lava Jato já é sagrada.

O Brasil não aceita mais a lei eleitoral vigente. Terá que mudar se não quiser que a maioria abandone as urnas.

Ninguém aceita mais os privilégios dos políticos que ferem a sensibilidade até mesmo dos mais distraídos. Ninguém quer um foro privilegiado que permite a uma casta ser julgada pelo Supremo, em vez de passar pelos juízes de primeira instância, como todos os mortais. Hoje, apenas três ou quatro países mantêm esse sistema, e, nos Estados Unidos, quando o ex-presidente Bill Clinton foi levado à justiça, teve que ser julgado por um tribunal de primeira instância. No Brasil, 22.000 pessoas têm foro privilegiado.

A sociedade não aceita que, se para ser porteiro de um edifício seja necessário um mínimo currículo escolar, isso não seja exigido para ser político.

Rejeita que a política, a serviço da sociedade, tenha se tornado um grande negócio para o enriquecimento. Como disse José Mujica, ex-presidente do Uruguai: “Por que um político não pode ganhar como um professor?”

Os brasileiros não admitem que no Congresso possam estar representados mais de 30 partidos, a maioria sem ideologia ou programa próprio. Puros fantasmas.

É possível que, nas próximas eleições, o Brasil ainda não saiba em quem votar, mas saberá em quem não votar. Desta vez, será mais difícil distrair ou comprar eleitores na hora de ir às urnas.

Por algum tempo, a sociedade viveu anestesiada, sem saber que nos porões do poder existiam tantos cadáveres escondidos

Segundo pesquisas, a grande maioria dos brasileiros rejeita tanto Dilma quanto Temer. Mais uma vez, sabem o que não querem, embora talvez não tenham claro os possíveis novos candidatos.

A sociedade, ainda fortemente racista, começa a rejeitar como nunca a violência contra a mulher, a discriminação sexista e as desigualdades sociais. 

Os jovens, mais do que os idosos, estão agora na vanguarda da oposição às velhas formas de política e de exercer o poder.

Ainda estão confusos e revoltados, mas já apontam soluções. Não querem, por exemplo, viver em cidades que os desintegram, desumanas, com guetos, sem espaços para respirar em liberdade, dominadas pela violência.

E todos, grandes e pequenos, rejeitam o ensino sem qualidade, as escolas que políticos e ricos nunca levariam seus filhos, como também a saúde pública, onde para os pobres é mais fácil morrer do que se curar.

Entre as coisas que os brasileiros com certeza querem é uma sociedade mais igualitária, sem tantas castas, com as mesmas oportunidades.

Talvez ainda não seja tudo, mas não é pouco.

Que isso não seja esquecido pelo poder, que até ontem caminhava tranquilo e confiante de que os brasileiros engoliam tudo. Já não.

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