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Jovens britânicos se indignam agora, mas estavam distraídos no dia do referendo

'Brexit' ocorreu em pleno Festival de Glastonbury, o mais lendário evento de rock britânico

Jovens com a bandeira da UE no festival de Glastonbury, em 22 de junho, véspera do referendo.Foto: atlas | Vídeo: S. Nenov / ATLAS
ÍÑIGO DOMÍNGUEZ, ENVIADO ESPECIAL

O referendo sobre o Brexit, a saída do Reino Unido da União Europeia (UE), foi realizado semana passada em pleno Festival de Glastonbury, o mais famoso e lendário evento de rock britânico, que começou no dia anterior. O festival contou com a presença de 180.000 pessoas, a imensa maioria jovens e com muitas bandeiras da UE, que acordaram na sexta-feira com ressaca e sem poder acreditar no resultado da votação. Cerca de 75% dos votantes entre 18 e 24 anos apoiaram o Remain (ou seja, a permanência no bloco europeu), segundo a pesquisa YouGov, exatamente o oposto do resultado entre a população mais velha. O estudo inclusive agregou, de forma bastante dramática, que para essa faixa etária a esperança de vida é de 69 anos e deveria arcar com as consequências até lá.

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A ira juvenil procurou uma válvula de escape na terça-feira e desembocou de tarde numa manifestação espontânea em Trafalgar Square, à qual se juntaram centenas de pessoas, a maioria jovens. Um grupo de amigos havia convocado o protesto pelas redes sociais, mas cancelou-o ao ver que não podia lidar com as mais de 50.000 adesões. Deu no mesmo: as pessoas foram.

Ao redor das 19h (15h em Brasília), havia cerca de 2.000 pessoas cantando expressões como o jogo de palavras We love EU (EU é a sigla para União Europeia, em inglês) e contra o ex-prefeito de Londres Boris Johnson e Nigel Farage, líderes do Brexit. Havia um ambiente festivo e de euforia. A multidão se limitava a sorrir, com alguns garotos coordenando os cantos com um megafone na escadaria da Coluna de Nelson. Pouco depois, as pessoas começaram a marchar pela rua em meio aos aplausos. Interromperam o tráfego e caminharam pela rua Whitehall em direção ao Parlamento. Nessa altura já eram muito mais numerosas – e ocuparam a rua. Os pedestres e turistas aplaudiam ao vê-las passar, enquanto os ônibus de dois andares buzinavam com simpatia. Assim, os jovens se sentiram apoiados pela cidade. A polícia vigiava de longe, sem intervir, embora com dezenas de agentes.

Há uma ideia amplamente difundida de que os pais e avós traíram seus filhos e netos, numa visível fratura geracional. No palco do festival, vários artistas se manifestaram com indignação. “O que eu sinto, e muita gente da minha idade também sente, é que há um sentimento de falta de amor entre a geração mais velha, que votou por um futuro que não queremos!”, gritou Matt Healy, de 27 anos, do grupo The 1975. Cantores carismáticos como Thom Yorke, do Radiohead, e Jarvis Cocker, do Pulp, também fizeram discursos consternados. P. J. Harvey leu um poema intitulado Nenhum Homem é uma Ilha. De forma mais prática, o líder trabalhista, Jeremy Corbyn, que planejava falar no palco do festival, decidiu suspender o ato.

Mais da metade dos jovens entre 18 e 24 anos, que eram a favor da permanência do Reino Unido na UE, se abstiveram de votar

“Sim, é triste ver como os mais velhos não se importam que agora não possamos viajar nem trabalhar no resto da Europa. Decidiram por nós. É frustrante”, dizia ontem a estudante de arte Fiona Reynolds, de 21 anos, na Oxford Street, pleno centro de Londres. Uma das principais ideias sobre o resultado do referendo é que os idosos arruinaram o futuro dos jovens. Mas talvez os próprios jovens tenham contribuído para isso, se for considerado outro fator menos conhecido, sobretudo porque ainda não há dados oficiais: a maioria dos jovens não votou. A participação foi mais alta nas zonas com média de idade mais elevada.

Algumas pesquisas indicam que mais da metade dos jovens entre 18 e 24 anos se abstiveram, porcentagem que segundo o canal Sky seria de 64%, enquanto os maiores de 45 anos votaram em peso. Entre as 180.000 pessoas que estiveram no Glastonbury, por exemplo, pagando 233 libras (1.025 reais) pela entrada de cinco dias, só puderam votar as que se preveniram e votaram pelo correio antes de 3 de junho ou chegaram ao festival um ou dois dias depois para poder colocar o voto na urna. O próprio fundador do festival, Michael Evis, de 80 anos, defensor da permanência na UE, pediu há dois meses que as pessoas votassem antes de ir ao evento, realizado numa localidade do sudoeste do país, a três horas de carro de Londres. Evis recordou, como também fizeram as autoridades eleitorais, que na região não haveria centro de votação.

Há uma ideia amplamente difundida de que os pais e avós traíram seus filhos e netos, numa visível fratura geracional

Segundo pesquisa feita pelo Times no festival, 83% dos presentes eram contra o Brexit. Mas o tabloide Daily Mail, que fez campanha a favor da saída, zombou dessa juventude que descreveu como zangada mas distraída. E fez uma enquete com 50 pessoas presentes ao festival: todas menos uma eram a favor da permanência, mas 21 admitiram que não haviam votado. Algumas achavam que haveria um centro de votação ali perto. Outras inclusive se queixaram de que o voto deveria ser pela internet e de que é preciso reformar um sistema obsoleto. O complicado processo de registro para votar também pode ter influído, assim como o fato de que as datas coincidiram com as férias na universidade. De todo jeito, o choque do referendo pode significar um despertar político para toda uma geração de jovens, embora tenha sido brusco – ou justamente por isso.

Traição mais ampla

Outra ideia que circula nas redes sociais diz respeito a uma suposta traição mais ampla: a sofrida pelos jovens de 16 e 17 anos, que não puderam votar, pois a lei fixa o limite mínimo de 18 anos, e que também se sentem marginalizados de uma decisão tão importante. “Não sei por que não pudemos votar. Eu teria votado. É um absurdo, pois ano que vem faço 18 e gostaria de estudar no exterior. Agora não sei se vou poder. Eles me proibiram sem me consultar”, diz Eric Ward, de 17 anos, outro jovem consultado ontem na Oxford Street. O argumento tem base: no referendo sobre a independência da Escócia, jovens de 16 anos já podiam votar.

Desse descontentamento juvenil nasce boa parte do pedido de um novo referendo, que já supera 3,5 milhões de assinaturas na internet, embora tanto barulho nem seja necessário. Com mais de 100.000 assinaturas o pedido deve ser discutido no Parlamento, mas sem ter maiores consequências. E há também outra contradição: o pedido foi promovido em maio (antes do referendo) por um tal Oliver Healey, com aspecto de trintão nas fotos, que já temia o resultado. Mas Healey fez isso pelo motivo contrário: membro de um pequeno partido nacionalista, o Ingleses Democratas, esse político é a favor do Brexit e julgava que sua opinião não triunfaria. Por isso queria repetir o referendo. Agora renega seu pedido de assinaturas.

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