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Referendo britânico forçará UE a fazer mudanças seja qual for o resultado

Bruxelas acredita que bloco terá de mudar tanto se o Reino Unido sair quanto se ficar na Europa

Claudi Pérez
O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, na quarta-feira.
O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, na quarta-feira.FRANCOIS LENOIR (REUTERS)
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A ironia não consiste em dizer “nem isto nem aquilo”, e sim “isto e aquilo” ao mesmo tempo, dizia um europeu ilustre, Thomas Mann. O referendo sobre o Reino Unido e a União Europeia (UE) é extremamente irônico: se os britânicos optarem por sair do bloco europeu, provocarão um choque nos mercados, mas, sobretudo, irão abalar as bases políticas da União Europeia. Mesmo se optarem por ficar, nada será igual na Europa. Isto e aquilo ao mesmo tempo: “A Europa não está em boa forma”, disse esta semana o ministro alemão Wolfgang Schäuble, o que sugere que a UE deve mudar, seja qual for o resultado do voto britânico. “A saída do Reino Unido é uma ameaça adicional em um contexto nada simples, com o populismo em ascensão, várias crises em jogo e lideranças questionadas nos grandes países”, afirmou ao EL PAÍS uma qualificada fonte europeia. “É preciso administrar o divórcio, se vier, e esperemos que, neste caso, seja tudo para melhor, não para pior; mas, mesmo se não vier, a mudança na Europa é inevitável”, acrescentou a mesma fonte.

Esta mudança, no entanto, dependerá da intensidade do terremoto. Se o Reino Unido sair do bloco, os bancos centrais estão preparados para injetar liquidez, mas vai ser difícil apaziguar a onda de referendos nos países onde o euroceticismo mais populista tem se destacado. Se não sair, analistas acreditam que uma votação apertada pode ser interpretada como uma espécie de saída suave, que exigiria uma resposta firme de Bruxelas. O problema é que o contexto não favorece nem um pouco esse tipo de resposta. A grandes diplomacias estão esperando para ver no que vai dar. França, Alemanha e Holanda têm eleições em 2017, com a extrema-direita em alta, sem incentivos para empurrar em direção a uma maior união política. Na Itália, existe um referendo programado para o fim do ano que pode afetar muito o primeiro-ministro Matteo Renzi. A Espanha está há seis meses sem Governo. E os países do leste europeu também estão mais hostis em relação a Bruxelas, especialmente Polônia, Hungria e Eslováquia.

Não há apetite para um salto semelhante ao da crise do euro. O chefe do Eurogrupo (que reúne os 19 ministros de Finanças e outras autoridades da zona do euro), Jeroen Dijsselbloem, disse na semana passada, em Luxemburgo, que os ministros de Finanças têm uma resposta preparada, mas descartou “medidas espetaculares”: tudo envolve completar a união bancária e ir dando pequenos passos em direção a uma federalização no lado econômico, com a percepção de que não há consenso para abranger esses avanços com laços mais estreitos no lado político, até mesmo devido à questão fiscal. O presidente da Comissão Europeia, Jean-Claude Juncker, irá delinear a resposta mais no longo prazo, no discurso sobre o Estado da União. O relatório dos cinco presidentes — Juncker, Dijsselbloem, o polonês Donald Tusk (Conselho), o alemão Martin Schulz (Eurocâmara) e o italiano Mario Draghi (Banco Central Europeu, BCE) — aponta vários passos à frente, mas no longo prazo: um Tesouro europeu, eurobônus, um orçamento da zona do euro, coisas desse tipo. Mas, principalmente, traça um esboço de uma nova UE que contemplaria uma estrutura de duas velocidades claramente distintas: um núcleo mais integrado com os países que querem uma UE mais federal, e uma periferia cada vez menos integrada com os países que colocam travas nas rodas cada vez que a UE quer avançar. O FMI afirmou, na semana passada, que um orçamento para a zona do euro é algo essencial, assim como os eurobônus para se proteger contra futuras crises. Draghi destacou o mesmo esta semana no Parlamento Europeu. “O pecado original da zona do euro é que requer um nível mais elevado de integração política do que os Estados membros podem vender aos seus respectivos eleitorados”, critica Simon Tilford, do Centro Europeu para a Reforma, um think tank de Londres.

O salto adiante, no contexto atual marcado pelas necessidades da chanceler Angela Merkel e do presidente francês, François Hollande, diante de suas eleições legislativas, é praticamente política-ficção: “Se o Reino Unido sair, mesmo com uma votação muito apertada, a resposta inicial da UE será mais simbólica do que qualquer outra coisa. As iniciativas de integração seriam mais relacionadas a assuntos de segurança e defesa, como as sugeridas pela França, do que à política econômica ou fiscal”, disse Mujtaba Rahman, da consultoria Eurasia Group. A grande maioria das consultorias — Euroasia, mas também a Eurointelligence, por exemplo — acredita que é mais provável um sim à Europa. Especialistas também apontam que, no caso do Reino Unido sair da UE, a Europa irá penalizar o país para evitar um contágio da onda de referendos, e para que Berlim e Paris mostrem rapidamente como o bloco funcionaria sem os britânicos. Aconteça o que acontecer, vem aí um segundo semestre perigoso, com a ameaça de recessão nos Estados Unidos, o impacto da crise dos refugiados e o legado da Grande Crise, que provocou enormes lacunas entre Norte e Sul, Leste e Oeste e, agora, pode aprofundar a divisão entre os dois lados do Canal da Mancha.

O Reino Unido fez da exceção sua marca na UE. Não quer aderir ao euro, participa das políticas de interior e de justiça de acordo com sua vontade, se protegeu contra os resgates financeiros... Mas, na corrida para o referendo, Londres tocou o coração do projeto europeu. Ao conseguir abrir um parêntese em relação à igualdade de direitos para trabalhadores europeus em solo britânico, o parceiro londrino abalou um dos pilares do projeto comunitário: a liberdade de seus cidadãos para se estabelecer em qualquer país da UE. Bruxelas deve discutir nos próximos meses propostas de outros países, que querem privilégios semelhantes. Inclusive com algum outro referendo parecido: Beppe Grillo, na Itália, e Geert Wilders, na Holanda, já ameaçaram seguir o exemplo britânico, e Marine Le Pen poderia tentar algo semelhante.

Se o Reino Unido sair da UE, o abalo será enorme. Mas Bruxelas terá trabalho mesmo se o país decidir ficar, para avaliar o acordo de fevereiro, especialmente na questão da imigração. A Comissão apresentará prontamente duas normas para limitar o direito de residência de duas maneiras. A primeira irá privar os novos europeus que pisem em solo britânico de certos benefícios a que os trabalhadores de lá têm direito (apenas quando o país sofrer uma “forte pressão sobre os seus sistemas públicos”, uma situação a ser definida na lei). A segundo adaptará os benefícios por filho ao país onde a criança reside (por exemplo, o empregado romeno cujo descendente vive na Romênia irá receber um benefício menor).

As normas são vistas como um mal menor, acertadas pelos outros parceiros europeus em fevereiro, para evitar a saída dos britânicos. Mas, se a vitória desta permanência for muito apertada, não está descartado que o primeiro-ministro britânico, David Cameron, bata à porta de Bruxelas pedindo novas restrições à liberdade de movimento, o verdadeiro campo de batalha onde se fortaleceu durante a campanha para a saída do Reino Unido do bloco. A UE não parece disposta a aceitar. “Não vejo vontade de ir além [do que foi acordado em fevereiro]. O que demos já é muito”, avaliou Ivan Korcok, secretário de Estado eslovaco no Ministério de Assuntos Europeus, em uma reunião com um grupo de jornalistas europeus. A Eslováquia vai assumir a presidência rotativa da UE em 1º de julho e será responsável por coordenar o pós-referendo britânico.

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