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“Faltam negros no palco da Flip, mas também na plateia”

Paulo Werneck, curador da Festa Literária de Paraty, defende sintonia do evento com transformações sociais

Paulo Werneck na Flip.
Paulo Werneck na Flip.André Conti

A Festa Literária de Paraty, o palco literário mais visível do Brasil, chega ao seu 14a ano com um dos menores orçamentos de sua história, dando, porém, um passo que muitos esperavam dela há tempos, com uma presença feminina expressiva na lista de convidados. Dos 39 autores que virão à festa no litoral fluminense de 29 de junho a 3 de julho, 17 são mulheres (44%).

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Paulo Werneck, curador da festa pelo terceiro ano consecutivo, reforça que a crescente presença feminina em Paraty tem a ver com um “compromisso do evento com o debate”, ao mesmo tempo que responde ao clamor de quem tomou as ruas em prol dessa causa em 2015. Uma das críticas que surgiram, no entanto, foi sobre a falta de escritores negros na seleção. Jornalista e editor que vivencia o evento desde o começo, Paulo disse em que se esforça para preencher as lacunas e defende, em entrevista ao EL PAÍS por telefone, que toda transformação social precisa acontecer tanto no palco como na plateia da Flip.

Pergunta. A maior concentração de mulheres na Flip este ano agradou muita gente. Você chegou a afirmar que esse é "um compromisso do evento com o debate atual". É também um esforço de se aproximar do público comum?

Resposta. A Flip conversa com todas as tendências do pensamento, e o feminismo é uma delas. É um dado real do debate intelectual. Não temos porque virar as costas para as questões contemporâneas. Além disso, tenho que pensar no público – naquela pessoa que foi a Paraty e comprou um ingresso para uma mesa em um dia de sol, ou então naquela que acessa os debates via transmissão online. Preciso convencê-las a ficar dentro da tenda. Isso é diferente de fazer uma ação populista com o objetivo final de ser popular. Não é em busca de popularidade que a gente faz isso, mas por uma situação mais paritária mesmo. Por que vou ser contra ser paritário? Não faz sentido. Temos que ser sensíveis a esses movimentos sociais que influenciam o pensamento. Acho salutar e espero que continue acontecendo.

"É fácil se perder com polêmicas do mundo cultural: querer agradar os jornalistas e não o leitor, ter que agradar o editor e não o autor... São muitas as ciladas que se colocam"

P. Como você rebate as críticas de quem acusa o evento de não ter este ano escritores negros representados na programação?

R. Não rebato as críticas, porque não estou acima delas, e a Flip tampouco. Temos que ouvir as críticas e atuar dentro da nossa possibilidade para que o quadro se altere, como foi na questão das mulheres. O que eu penso é que na questão racial os entraves são maiores. Talvez as portas fechadas para os autores e autoras negros sejam maiores e mais onerosas do que as mulheres. Estou especulando, porque não sou mulher, não sou negro, mas, como curador, sou obrigado a discutir sobre a questão. Não estou me colocando no lugar de ninguém, apenas tentando pensar porque acontece isso. Por que chamei tantos autores negros e estar na Flip não foi possível para eles. Talvez não tenham querido ou as condições materiais lhes impediram.

P. Quais autores você chegou a convidar, que não puderam vir?

R. Convidei a Chimamanda Ngozi Adichie, da Nigéria, e o Neil DeGrasse Tyson, dos Estados Unidos, que é um astrônomo genial. Aqui no Brasil, chamamos o Mano Brown, para quem guardamos uma vaga até o final, porque eu estava realmente esperançoso que ia dar certo, mas não deu. Também convidei a Elza Soares, que para mim é uma das maiores artistas do país e está com um disco maravilhoso agora, mas ela não aceitou. De fora, chamei também o Ta-Nehisi Coates, um jovem ensaísta negro que teve muito destaque nos conflitos da polícia com a população negra nos Estados Unidos. Há coisas que realmente fogem ao desejo do curador. Nesses casos em que fica uma lacuna é preciso criar estratégias para desviar do entrave. Ainda temos uma mesa pendente, que será definida.

Posso só fazer mais uma observação sobre a questão racial?

P. Claro.

R. Ano passado, a gente recebeu um autor do Quênia, o Ngugi wa Thiong’o. Ele deu uma entrevista em vídeo em que o repórter perguntou o que ele tinha visto em Paraty e do que tinha gostado. Aí ele responde: “O que eu vi em Paraty é que não tem negros na rua. E na plateia da Flip também não tem”. O problema dessa representação não está só no palco, mas na plateia também. Estamos vendo no país uma transformação social em que o rosto dos alunos das universidades brasileiras está mudando. Está entrando um contingente de alunos negros que antes não havia. Espero que esse movimento se complete e que o público da Flip também seja diferente. É algo que precisa acontecer no palco e na plateia.

P. Você tem uma proximidade com a literatura latino-americana, e a Flip contribuiu para tornar visíveis os autores hispânicos aqui nos últimos anos. O que te chama atenção na produção literária contemporânea da vizinhança?

R. Alguns autores latinos ainda têm que passar pelos Estados Unidos para chegar ao Brasil. Esse circuito ainda está montado dessa maneira em alguns países. O México, que está presentado na Flip pelo terceiro ano, é um país distante da literatura brasileira. Temos mais proximidade com os argentinos, por exemplo, porque para nós a troca está mais concentrada na América do Sul. Agora acho que estamos rompendo isso. Não tem porque o Brasil não estar integrado nessa onda literária que cresce na América Latina. É a mais forte do mundo hoje. Fala-se muito no atual boom latino-americano, em autores que estão na vanguarda mundial das letras, como o Alejandro Zambra, o Daniel Alarcón, a Valeria Luiselli – que participará da Flip este ano.

P. Esse é seu terceiro ano na curadoria da Flip. Quais foram os aprendizados e os desafios?

R. A gente aprende melhor o trabalho. Por exemplo, a criar estratégias para convidar os autores. No começo, eu me alongava muito apresentando Paraty e a Flip para os autores, por exemplo. Hoje sei que e-mails curtos têm muito mais chances de serem respondidos do que um e-mail longo.

P. Mas você se sente hoje mais confortável nesse lugar, que inspira muitos elogios, mas críticas também?

R. O que não posso fazer é perder o foco no público. Trabalho para os leitores – pessoas que assistem às mesas em Paraty ou através das transmissões online, que leem uma boa entrevista no jornal... É fácil nesse trabalho você se perder com polêmicas de algum nicho do mundo cultural: querer agradar os jornalistas e não o leitor, ter que agradar o editor e não o autor... São muitas as ciladas que se colocam, né? A gente precisa saber sempre desviar delas.

P. De que maneira a voz a homenageada desta edição, a poetisa Ana Cristina César, vem a calhar para o momento político que o país está vivendo?

R. Esse momento politicamente abafado que estamos vivendo, a meu ver, é muito parecido com o dela, nos anos 70. Tão diferente, mas tão parecido. Tem também essa coisa do escritor que se publica e se divulga, algo que se vê hoje. A geração de Ana Cristina César rompeu com um estilo de fazer poesia. Tinha mais a ver com pesquisa, era mais na praia, no bar, na vida noturna, nas viagens. Tem isso de buscar uma vida literária diferente, menos austera, menos retirada. E de responder com poesia a um momento político tenebroso, de criar uma obra de resistência sem pensar diretamente as questões concretas da política da época dela. Acho superpertinente. Ana C. é uma figura forte, que só cresce.

P. Além disso, a poesia costuma funcionar bem na Flip, nas mesas cheias e vendas de livros. Como se explica essa contradição: muitas pessoas torcem o nariz para a poesia, mas ao mesmo tempo ela é um fenômeno editorial?

R. Existe um movimento editorial legal, de boas coleções. Tanto na esfera estilo mainstream como na underground tem bons projetos de rolando. Porém, falando mais amplamente, em um país pouco letrado como o Brasil, se aproximar da poesia não é fácil. O livro, aqui, é muitas vezes um objeto meio sagrado, no mau sentido do termo, do qual as pessoas às vezes têm medo. Talvez a Flip e outros festivais ajudem a desmistificá-lo e a tirar a poesia dessa espécie de pedestal, a abrir os olhos para a sua beleza.

P. Você acredita que a crise política pode nublar o evento de alguma maneira?

R. Acho que nesse sentido o evento existe para nos mostrar coisas que podem nos inspirar e nos fazer refletir sobre a crise. Se a gente for reiterar os discursos que já existem, vamos perder. Além disso, eu, sinceramente, não sei qual será a situação do país em 29 de junho. As coisas vêm acontecendo intensamente e muito rápido.

P. Como você acha que a Flip se tornou o evento de literatura mais visível do Brasil?

R. Acho que a Flip pôs o Brasil no radar dos escritores estrangeiros. Antes dela, não era comum o país receber 20 escritores do mundo inteiro em um evento. Muitos não conheciam de fato o Brasil, né? Mesmo pessoas muito cultas no exterior ainda têm estereótipos do país. Os escritores que vieram no começo fizeram propaganda para os seus colegas, e aos poucos entramos no mapa da literatura internacional. Por outro lado, temos aqui uma vida literária que se transformou nos últimos 15 anos. Acho que a Flip consolidou o modelo do festival como o epicentro da vida literária hoje. Em outros momentos, ela se concentrava mais nas livrarias ou nos cadernos de cultura dos jornais... Dos cerca de 300 festivais literários do Brasil, muitos trazem as iniciais FL. A Flupp, que acontece na periferia do Rio, acabou de ganhar um prêmio da London Book Fair, por exemplo. Isso é um orgulho para nós, porque é um formato que a gente de certa maneira capitaneou. Muitas cidades históricas brasileiras encontraram nele um viés cultural, o que também é superimportante.

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