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Tribuna
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O passado que assombra o sistema de Justiça paulista

Entre os dias 12 e 21 de maio de 2006, 564 pessoas foram assassinadas em São Paulo. Agora, finalmente a PGR se manifesta a favor da “federalização” das investigações

Bombeiros apagam chamas de ônibus incendiado por integrantes do PCC na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo, em maio de 2006. Vários ônibus foram incendiados naquela semana.
Bombeiros apagam chamas de ônibus incendiado por integrantes do PCC na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo, em maio de 2006. Vários ônibus foram incendiados naquela semana. Rogério Cassimiro/ (Folhapress)

O próximo sábado, dia 14 de maio, não será um dia qualquer para as famílias de Fabio de Lima Andrade, Israel Alves de Souza, Fernando Elza e dos irmãos Edivaldo e Eduardo Barbosa de Andrade. Nessa data, há exatamente dez anos, os jovens foram covardemente alvejados em frente de casa por homens encapuzados. Três morreram imediatamente. Um dos sobreviventes foi assassinado seis meses depois a pouco metros de onde ocorrera a chacina.

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Aquela tampouco era uma noite qualquer no Parque Bristol, na zona sul de São Paulo. A cidade vivia uma escalada de violência entre o Primeiro Comando da Capital (PCC), a Polícia Militar e grupos de extermínio supostamente ligados à corporação. Entre os dias 12 e 21 de maio de 2006, 564 pessoas foram assassinadas por armas de fogo no Estado – um número pelo menos quatro vezes superior à média registrada no mesmo período do ano anterior. Cerca de 90% das vítimas eram civis, quase todos homens com até 35 anos e sem antecedentes criminais. Segundo levantamento realizado pelo Laboratório de Análise da Violência da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, encomendado pela Conectas Direitos Humanos, cerca de 60% dos cadáveres apresentavam pelo menos um disparo na cabeça – um importante indício de execução.

Não foi diferente com os jovens do Parque Bristol. As execuções seguiram um padrão típico da ação de grupos de extermínio, sobretudo num contexto de assassinatos de agentes públicos nos primeiros dias daquela semana sangrenta e retaliações contra civis concentradas nos dias posteriores. O bairro estava sob toque de recolher extraoficial. Viaturas policiais foram vistas circulando na área momentos antes do ataque, empreendido por mascarados que desceram atirando de um carro escuro e sem identificação. Policiais apareceram no local poucos minutos depois, recolhendo cápsulas e alterando a cena do crime. Reforça a tese de extermínio, ainda, o assassinato de um dos sobreviventes em circunstâncias similares, apenas seis meses depois.

Cerca de 90% das vítimas eram civis, quase todos homens com até 35 anos e sem antecedentes criminais

Nada disso foi pelo menos digno de atenção para as instituições do sistema de Justiça de São Paulo. Repetindo o roteiro aplicado a outras chacinas ocorridas no período, a investigação foi irresponsavelmente tocada pela Polícia Civil e pelo Ministério Público. Após diligências tímidas e burocráticas, o Judiciário arquivou as apurações sem encontrar culpados. Nenhum exame para localizar o carro usado nas execuções. Nenhuma prova para comparar a munição utilizada. Nenhum depoimento dos policiais que atuavam na região. Nada.

Essa inação motivou, em 2009, um pedido de deslocamento de competência das investigações por parte das famílias, com o apoio da Conectas, para que os fatos fossem investigados pela Polícia Federal e Ministério Público Federal, sob o crivo de um juiz, já que as autoridades estaduais davam provas de falta de interesse em apurar verdadeiramente o ocorrido.

Passados incríveis sete anos, a Procuradoria Geral da República finalmente se manifesta a respeito dos graves fatos e a favor da “federalização” das investigações. O Superior Tribunal de Justiça ainda deverá julgar o pedido.

Após diligências tímidas e burocráticas, o Judiciário arquivou as apurações sem encontrar culpados

Em sua manifestação, Rodrigo Janot afirma que “falhas e omissões gravíssimas” permearam todo o processo de investigação estadual e que manter o arquivamento do inquérito “seria ratificar a atuação violenta de agentes de segurança pública”.

Janot reconhece, assim, a falta de vontade política das instituições paulistas para lidar com a violência do Estado, reforçando a tese insistentemente defendida todos estes anos pelos familiares, movimentos sociais e organizações de direitos humanos.

Que a tão aguardada federalização das investigações desses crimes bárbaros traga finalmente à tona o emaranhado de violações e injustiças que essas e outras centenas de famílias vivem há 10 anos. Agora é esperar que o STJ seja sensível o suficiente para processar e levar a julgamento com rapidez, decidindo em definitivo pelo deslocamento de competência.

Rafael Custódio é advogado e coordenador do programa de Justiça da Conectas Direitos Humanos.

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