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O cigarro eletrônico ajuda a parar de fumar?

Médicos britânicos apoiam o uso do artefato, mas pneumologistas alertam para riscos desconhecidos

Homem fuma um cigarro eletrônico em Barcelona.Foto: reuters_live | Vídeo: GIANLUCA BATTISTA | EL PAÍS-QUALITY
Jessica Mouzo

Médicos britânicos reabriram a polêmica sobre o uso dos cigarros eletrônicos (e-cigs) e seus possíveis benefícios para quem quer parar de fumar. Em seu mais recente estudo, o Real Colégio de Médicos (RCP, na sigla em inglês) aposta em promover o artefato como uma alternativa ao cigarro comum, porque ele “pode ajudar os fumantes a abandonar o consumo”. Já pneumologistas espanhóis, contrários à adoção desse método para enfrentar o hábito, mantêm suas opiniões e alertam para a falta de evidências científicas sobre essa conclusão. O único ponto em que ambos os lados coincidem é no fato de que os e-cigs não são inofensivos (também proporciona a inalação de substâncias tóxicas), tem efeitos adversos sobre a saúde (ainda que menores que os do cigarro comum), ainda desconhecidos em longo prazo.

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Sobre a mesa estão, novamente, dois enfoques diferentes para tratar o problema do tabagismo e o papel do cigarro eletrônico. Os britânicos defendem tratar o assunto a partir de uma perspectiva de redução de danos (se não é possível parar de fumar, pelo menos consumir algo que cause menos prejuízos ou que seja mais lento nesse processo). Enquanto isso, os norte-americanos, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e pneumologistas espanhóis apoiam a opção da abstinência e rejeitam, por falta de evidência científica, a ideia de usar os cigarros eletrônicos como uma estratégia de saúde pública para ajudar fumantes a parar. Até mesmo a população europeia se mostra relutante em acreditar nas vantagens do e-cig. Segundo um estudo da revista Tobacco Control, mais da metade dos europeus considera que os cigarros eletrônicos são prejudiciais. Em 2012, uma em cada quatro pessoas (pouco mais de 27%) os via como um risco para a saúde, mas esse número subiu para 51,5% em 2014.

Para os médicos britânicos, dentre todos os elementos nocivos que um cigarro comum pode conter, a nicotina é o menos pior. De fato, apesar de ser o elemento que gera a dependência, não se trata de um agente cancerígeno e, por si só, não mata. O que realmente fulmina boca, faringe, pulmões e tudo o que cruzar seu caminho é a fumaça do cigarro, o resultado da combustão, o alcatrão e outros compostos que são tóxicos. Assim, apelando à redução dos danos, os médicos do Reino Unido revisaram toda a literatura científica sobre o assunto e concluíram, em linha com outro relatório publicado pelo serviço de saúde pública britânico no ano passado, que os e-cigs são eficientes para ajudar a parar de fumar e se confirmam como “uma opção viável de redução de danos”. “A experiência até agora sugere, como se previu inicialmente, que a disponibilidade de cigarros eletrônicos foi benéfica para a saúde pública”, afirma a análise.

Os médicos britânicos argumentam que, em comparação a outras terapias de substituição da nicotina, como adesivos, chicletes ou comprimidos com esse composto, “os cigarros eletrônicos têm a capacidade de substituir mais as características dos cigarros de tabaco”. Para eles, nenhum dos outros tratamentos substitutivos “reproduz a rápida liberação de altas doses de nicotina obtida pela inalação da fumaça de tabaco, e poucos fumantes os considera agradáveis ou satisfatórios”. O fato de levar a mão à boca, os rituais de comportamento, o estímulo sensorial que a inalação produz e o sabor deixado pelo vaping geram mais satisfação para os fumantes.

O organismo profissional também descarta que o uso dos cigarros eletrônicos banalize o ato de fumar ou seja uma porta de entrada dos mais jovens para o tabaco, que são as duas principais preocupações dos opositores. No entanto, a FDA, agência americana de controle de medicamentos, proibiu há algumas semanas a venda de cigarros eletrônicos aos menores de 18 anos, após constatar um aumento do consumo nessa faixa etária. Segundo a FDA, três milhões de estudantes norte-americanos admitiram ter usado cigarros eletrônicos no ano passado (em 2014, foram 2,46 milhões). O Governo norte-americano também exigirá às empresas que informem todos os ingredientes que são inalados no vaping.

Embora os britânicos reconheçam que “o vapor do e-cig pode conter algumas das toxinas presentes na fumaça do tabaco”, justificam que “os níveis são muito mais baixos”. A ordem profissional admite que os efeitos são “desconhecidos, mas é provável que sejam muito menores”. Concretamente, os britânicos apoiam um estudo que indica que o prejuízo do cigarro eletrônico para a saúde é 95% menor que o provocado pelo cigarro tradicional.

Os EUA proibiram a venda de cigarros eletrônicos a menores de 18 anos depois de detectar um aumento do consumo nesse grupo

Para os críticos do enfoque, o fato de o e-cig ser menos ruim que o tabaco tradicional não é suficiente. “Tudo tem menos risco que fumar, mas essa não é a questão”, diz Ángela Martínez Picó, da Sociedade Catalã de Atenção e Tratamento do Consumo do Tabaco. “[A nova iniciativa] reduz mais o risco que fumar, mas impede que a pessoa possa se desabituar totalmente.” Os pneumologistas espanhóis apoiam os tratamentos com nicotina, mas não o e-cig como veículo para administrá-la, porque desconhecem seus efeitos em longo prazo. “No âmbito farmacêutico, há medicamentos que mostraram ser eficazes, como os inaladores de nicotina, e que não são tóxicos. É inegável que [o e-cig] é menos prejudicial, mas no vapor também há substâncias tóxicas”, diz o médico Carlos Jiménez, diretor de pesquisas sobre tabagismo da Sociedade Espanhola de Pneumonia e Cirurgia Torácica (SEPAR).

Na comunidade médica espanhola, contudo, existem vozes favoráveis ao vaporizador. “Na Espanha, está sendo feita uma campanha moralista que tem a abstinência como objetivo. O mesmo ocorreu quando a metadona foi administrada a pacientes dependentes de heroína, uma medida que foi um escândalo para os moralistas e que demonstrou ser efetiva. O tabaco é prejudicial, mas a nicotina poderia ser um tratamento. O que é preciso saber é se o e-cig serve para veiculá-la. E estão sendo reunidas evidências científicas para provar isso”, diz o médico Néstor Szerman, da Sociedade Espanhola de Patologia Dual. Assim, enquanto Szerman aposta numa “política de saúde pública que financie a nicotina dentro do sistema público”, Francisco Camarelles, vice-presidente do Comitê Nacional para a Prevenção do Tabagismo, afirma que o cigarro eletrônico “pode funcionar como um plano de redução de danos em casos individuais e concretos, mas não como uma estratégia global de saúde pública”.

Defensores e críticos do cigarro eletrônico utilizam o mesmo argumento para defender suas posturas: a falta de evidência científica. A vertente britânica diz que não há provas de que o e-cig seja muito prejudicial no longo prazo, e os que optam pela abstinência como estratégia principal afirmam que “não há estudos conclusivos” sobre seus benefícios para deixar o vício. Os espanhóis alegam também que os relatórios que sustentam a proposta dos médicos britânicos têm uma base metodológica duvidosa e não são completamente conclusivos. Além disso, alguns de seus autores apresentaram conflito de interesses. “Temos limitações metodológicas a respeito de alguns estudos, que são populacionais, não controlados e não aleatórios. É fundamental que seja feito um estudo amplo que cumpra com as características do rigor científico”, diz Jiménez.

O contexto britânico, onde existe um controle ferrenho contra o tabaco com medidas muito dissuasivas, como o aumento dos preços e a proibição de propagandas, também é determinante para entender a postura dos profissionais, segundo os críticos. “Utilizam dados dos britânicos, obtidos em seu país. Apresentam estudos feitos lá sobre o impacto na população, mas é um país muito sensibilizado no controle do tabagismo, com uma realidade muito diferente da de outros lugares”, diz Jiménez. Dezoito por cento dos britânicos são fumantes, em comparação com 25% dos espanhóis.

À espera da regulamentação

As divergências entre a comunidade científica afetam também a regulamentação dos e-cigs. Os críticos dos vaporizadores se dizem à espera de evidências científicas. "Quando se demonstrar que funcionam para deixar de fumar, sou a favor de que sejam regulamentados como um medicamento, com todas as garantias", diz Jiménez. Por sua vez, Camarelles defende que os e-cigs "sejam regulamentados como o tabaco".

Já entre os defensores há mais discordâncias internas. "Gostaríamos que fosse um tratamento regulado como um medicamento, ainda que [os e-cigs] possam ser usados de forma recreativa por quem quiser, mas deve estar sob controles sanitários", diz Szerman. Carmen Escrig, coordenadora internacional da Organização de Médicos em Apoio ao Vaporizador e os Cigarros Eletrônicos (MOVE), defende que o mercado se desenvolva sozinho. "O mercado e o consumidor devem fazer sua evolução, pois numa farmácia não se podem vender todos os dispositivos existentes no mercado", afirma.

O Governo espanhol está atrasado na promulgação do decreto para adequação da norma europeia que entrou em vigor na sexta-feira. Segundo a nova diretriz, os maços de cigarro e as embalagens de tabaco para enrolar terão que incluir advertências sanitárias com fotos coloridas impactantes e informações sobre os riscos ocupando 65% dos envoltórios. A norma não proíbe os cigarros eletrônicos, mas introduz certos requisitos de segurança e qualidade para os que contêm nicotina.

"Está sendo um trabalho muito complexo, com a dificuldade adicional, nesta última etapa, das limitações de um Governo em exercício, já que a adequação exige mudanças legislativas que não podem ser feitas agora", disseram fontes do Ministério da Saúde espanhol à agência Europa Press. O primeiro rascunho do Ministério sobre a adequação da norma europeia permite vender os e-cigs em farmácias.

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