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Motor franco-alemão não move mais a locomotiva europeia

Relação entre Merkel e Hollande é desgastada por divergências sobre migração, crise do euro e comércio

Luis Doncel

A cena aconteceu em Munique, em fevereiro. O primeiro-ministro da França, Manuel Valls, aproveitou sua presença na Conferência de Segurança realizada a cada ano na capital bávara para dar um sonoro tapa na chanceler (primeira-ministra) Angela Merkel. Fez mais do que apenas se negar a acolher um só refugiado a mais que os 30.000 combinados. Também passou a ironizar a política migratória alemã. “Os meios de comunicação queriam saber havia meses onde estava a Merkel francesa, para quem até queriam dar o Nobel da paz. Hoje podemos constatar os resultados...”, disse. As palavras de Valls tiveram o impacto de um tiro em Berlim. Fontes diplomáticas disseram por estes dias estar conscientes das dificuldades atravessadas pela França, com uma Frente Nacional disparada nas pesquisas, mas consideraram inaceitável que um dirigente francês se expressasse dessa maneira em solo alemão.

Merkel e Hollande, durante encontro em abril
Merkel e Hollande, durante encontro em abrilPhilippe Wojazer (Reuters)

O episódio foi atenuado mais tarde graças à intervenção do presidente François Hollande, mas mostrou a diferença de percepção dos dois lados do rio Reno. As desavenças não afetam apenas os refugiados. Há anos Berlim se desespera em razão do que considera uma excessiva lentidão de Paris num plano consistente de reformas econômicas. E a gestão alemã da crise grega enervou boa parte dos parceiros europeus, incluindo os franceses.

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“O problema básico é que os dois passam por situações muito diferentes. Enquanto a Alemanha procura soluções para os refugiados, a França enfrenta uma dupla crise, socioeconômica e de segurança interna. Conseguem fechar acordos, mas mínimos, em vez de soluções ambiciosas de longo prazo”, afirma Claire Demesmay, chefe do programa de relações franco-alemãs do think-tank DGAP. Um representante do Governo alemão constatava semanas atrás essas divergências e alertava com preocupação como faz tempo que a visão dominante na Alemanha sobre as diversas crises que afetam a Europa se afasta progressivamente da de muitos de seus parceiros europeus.

O mais recente desacordo gira em torno do tratado comercial negociado por União Europeia e Estados Unidos. Merkel insiste em acelerar as tratativas, apesar da resistência encontrada no Governo francês e também em casa. Os sociais-democratas, com os quais governa, mostram-se cada vez mais reticentes. E cerca de 70% dos alemães veem mais inconvenientes que vantagens no acordo, segundo pesquisa da televisão ARD.

Mas as relações entre Merkel e Hollande melhoraram consideravelmente desde um início de mandato bastante frio do francês. As horas de intermináveis negociações sobre a crise da Ucrânia, em que Paris e Berlim deram as mãos, cimentaram a confiança entre ambos. Os atentados jihadistas em Paris, primeiro em janeiro de 2015 e depois em novembro, ajudaram também a estreitar os laços. O portão de Brandeburgo iluminada com o azul, branco e vermelho da bandeira francesa simbolizou essa solidariedade.

A chanceler e o presidente têm, além disso, um inimigo comum nos populismos que enfrentam nas eleições que os dois países realizarão em 2017. Merkel, que muito raramente se intromete em batalhas políticas alheias, disse em 3 de maio que gostaria de contribuir para o fracasso da Frente Nacional. “É um partido a que devemos nos opor, assim como a outros com um discurso muito negativo sobre a Europa”, declarou durante visita a uma escola francesa em Berlim. “Os dois países veem sua relação bilateral como uma grande conquista que não pode ser prejudicada. Principalmente agora, quando as diferenças com o novo Governo polonês e o debate sobre a saída do Reino Unido da UE dificultam a busca de alianças duradouras na UE”, acrescenta Demesmay.

Apesar de tudo, os interesses comuns não escondem o fato de que o motor franco-alemão já não funciona como no tempo das duplas Giscard-Schmidt e Mitterrand-Kohl, quando a voz dos dois grandes países era ouvida com a mesma atenção. A reunificação, o sucesso econômico alemão e a paralisia francesa corroeram esse equilíbrio.

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