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Entrevista | Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal

“Desafio econômico será mais difícil para Temer do que foi para Itamar”

Para ex-secretário da Fazenda do Governo Lula, problema fiscal só será resolvido a longo prazo

Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal.
Bernard Appy, diretor do Centro de Cidadania Fiscal.Divulgação

Bernard Appy, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda do Governo Lula, se diz contrário ao impeachment da presidenta Dilma. Mas, não tem dúvidas que o afastamento da mandatária pode trazer um novo respiro para a economia brasileira atolada hoje na pior recessão dos últimos anos. Grande conhecedor das contas públicas do país, Appy alerta que o caminho pelo qual terá que percorrer o provável Governo de Michel Temer para colocar ordem nas finanças não será fácil. O economista atualmente é diretor do Centro de Cidadania Fiscal que produz estudos para a melhorar a gestão fiscal.

Pergunta. O momento econômico neste processo de impeachment é muito diferente daquele da saída de Fernando Collor? O desafio do Temer pode ser maior do que foi para Itamar Franco?

Resposta. O desafio do Itamar era menor. Ele tinha o problema da superinflação, mas em compensação o problema fiscal era menor após o plano Collor, por conta do confisco da poupança que foi feito [em 1990]. Naquele tempo a inflação ajudava a consertar o ajuste fiscal. A situação de hoje é mais difícil do que o daquela época. Está mais difícil resolver a situação fiscal. O desafio econômico de Temer, caso assuma, é muito maior do que foi para o Itamar. O grau de liberdade hoje é bem menor, o grau de rigidez é muito maior do que era naquela época, o nível de gasto com Previdência é maior atualmente, e a chance de aumentar a carga tributária hoje é menor.

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P. E a dívida pública?

R. O Brasil não está a ponto de se tornar inadimplente na dívida pública, mas, se você mantiver a trajetória atual nos próximos cinco anos, aí corre um risco do Governo dar um calote na dívida pública.

P. O senhor participou do Governo Lula durante anos, é ex-secretário-executivo do Ministério da Fazenda. Na sua opinião, o que fez desandar a gestão do PT?

R. Na crise de 2009, o Brasil vinha de uma boa política fiscal desde o fim do Governo Fernando Henrique e [que se estendeu] no primeiro mandato do Lula. Assim, tinha margem para fazer política anticíclica. Porém, as medidas que faziam sentindo em 2009 não faziam mais sentido quando se recuperou a normalidade. Depois, de 2012 a 2014, o Governo Dilma criou um monte de despesas e perdeu a noção do razoável diante da política fiscal. Adotou uma série de programas que individualmente, talvez, até fossem justificáveis, mas que no agregado tinha um custo enorme. Boa parte desses programas [revelou seu] seu custo no longo prazo. Além disso, o Governo vendo a economia retroceder achou que resolvia o problema com uma política de aumentar demanda [com estímulos ao consumo], quando, na verdade, o problema estava na oferta [produção das empresas].

P. Como assim?

R. A produtividade no país estava crescendo tão pouco, a economia do Brasil estava quase em pleno emprego, não fazia sentido aumentar a demanda. Isso resultou em inflação e no déficit das contas. Com a inflação ainda teve o erro de tentar segurar os preços dos itens administrados [gasolina, energia] artificialmente. Quando você junta tudo isso, o impacto é brutal. Foi o que vimos no ano passado. Do ponto de vista microeconômico, o excesso de assistencialismo do Governo a setores específicos têm um impacto muito negativo. O país virou um grande balcão de demandas setoriais e aí você perde a noção: passa a ser mais importante empresas conseguirem uma benesse em Brasília do que se tornarem competitivas. Essa história do Governo tentar decidir quem vai puxar a economia também não funciona. Foi uma soma de erros de gestão de políticas econômicas desde o final do segundo mandato de Lula que levaram a essa situação.

P. Caso o vice Michel Temer assuma a presidência após o processo de impeachment, o senhor acredita que o crescimento da economia pode ser retomado?

R. O programa econômico apresentado por Michel Temer, chamado "Ponte para o Futuro", indica que ele estaria disposto a enfrentar parte da reforma da Previdência. Resta saber como seria feito isso politicamente, já que sabemos que é uma agenda impopular. Mas também me parece claramente justificável do ponto de vista social, você explicar que a sociedade não pode pagar para uma pessoa se aposentar aos 50 anos de idade. Em princípio, Temer diz que vai enfrentar mas não dá pra saber. Só será resolvido o problema fiscal com medidas que reduzam as despesas ao longo prazo. No curto prazo, se for importante adotar medidas para melhorar a expectativa da economia será muito difícil não fazer isso via impostos. Mas se for bem feita, a alta de tributos seria temporária, se manteria por alguns anos e se reduziria progressivamente.

P. Qual o maior desafio hoje?

R. Do ponto de vista econômico um dos principais problemas do Brasil é o fiscal. Se você olha a trajetória da dívida pública percebe que ela é insustentável no longo prazo. Isso decorre, em grande medida, de uma trajetória de crescimento das despesas públicas nos últimos 25 anos. No curto prazo, essa situação fiscal está agravada também pela forte retração econômica que acaba derrubando a arrecadação. Nesse cenário, o ideal seria ter uma política fiscal que sinalizasse uma forte redução no ritmo das despesas públicas ao longo prazo, mas que não fosse contracionista no curto prazo. No entanto, não sei se isso é possível no Brasil. Uma política expansionista no curto prazo só é factível se ela vier acompanhada com fortes medidas que sinalizem o ajuste ao longo prazo.

P. Em um provável mandato de dois anos, caso a presidenta Dilma Rousseff seja afastada, Temer teria tempo para as reformas?

R. Sim, acho que em dois anos essas mudanças podem ser feitas, não todas, mas dá pra mexer na Previdência, na idade mínima. Dá pra alterar algumas coisas no sistema tributário. Agora tem custo político e resta saber se ele vai ter condições políticas de fazer. No caso da Dilma ficar, o que se mostra pouco provável, é mais difícil ainda fazer essa mudança, por falta de apoio político da própria base. Eu, pessoalmente, não sou a favor do impeachment, não gosto desse processo da maneira que ele está sendo feito, mas reconheço que se a Dilma ficar o cenário econômico é péssimo. No caso do Temer há uma melhora no curto prazo, mas a consolidação dessa melhora na confiança vai depender das medidas que forem adotadas. O quadro é extremamente complicado, mas quanto mais ele adotar medidas críveis de longo prazo, mais espaço ele tem para fazer uma política fiscal que não seja tão contracionista no curto prazo.

P. Quais seriam as medidas mais urgentes?

R. Uma é a reforma da Previdência Social. O problema no Brasil é que temos várias distorções cujas correções, embora sejam impopulares, são perfeitamente justificáveis do ponto de vista social. No país, temos um sistema que permite que as pessoas se aposentem com uma idade muito baixa de tempo de contribuição. A média é de 56 anos para o homem e 53 para a mulher, uma idade muito baixa se comparada aos padrões internacionais e em um país em que a expectativa de vida vem crescendo muito. O segundo grande problema é essa mistura do que é previdenciário ou assistencial, que precisaria ser resolvida. Você tem benefícios claramente assistenciais no mesmo valor de benefícios de previdência e, em alguns casos, até maior. Um exemplo é a aposentadoria rural. Embora ela seja chamada de benefício da Previdência ela é claramente assistencial, você pode recebê-la sem ter contribuído nada. No Brasil, temos uma situação que pessoas que nunca contribuíram podem se aposentar mais cedo e receber mais que pessoas que o fizeram.

P. O que deve piorar com o aumento da população idosa ...

R. Sim, temos um problema duplo, a população idosa crescendo rapidamente e um aumento real do valor desses benefícios vinculados ao salário mínimo. Essa conta simplesmente não fecha. Para se ter uma ideia, se você projetar o modelo atual até 2050, os gastos com previdência no Brasil que hoje são de 8% do Produto Interno Bruto (PIB), mesmo com a economia crescendo, o valor passa para algo entre 15% e 18% do PIB. Esse aumento de gasto só seria sustentável a longo prazo se tivesse um aumento de carga tributária.

P.As despesas obrigatórias também tem sido um entrave grande para o ajuste fiscal. O que poderia ser feito?

R. A situação é insustentável. Existe uma rigidez de despesa no pessoal de funcionários públicos muito grande. Na verdade, muitas distorções são no funcionalismo público. Estados pobres com funcionários de salários altíssimos. É preciso sinalizar para uma trajetória de solvência do problema fiscal no longo prazo. Para isso é preciso passar por uma mudança na Previdência, pela rigidez das despesas com o pessoal, e tem também o fato do país não ter um espaço de discussão democrática sobre as questões relevantes do orçamento. Um exemplo recente. Uma lei definiu que o Brasil vai ter que gastar 10% do Produto Interno Bruto (PIB) em educação e hoje ele gasta 6%, mas ninguém disse de onde virão os outros 4% do PIB que faltam. Não foi discutido e obviamente não será algo que se sustente. Não existe no Brasil uma visão de longo prazo sobre a evolução de despesas e receitas que ajude na decisão de criação de despesas e como elas serão financiadas. E quando a crise chega esse problema é resolvido via aumento de carga tributária ou cortes de investimentos, o que é péssimo do ponto de vista de crescimento do país no longo prazo. Outra questão importante é que a produtividade tem crescido muito pouco nas últimas décadas. É preciso uma agenda da economia voltada para aumentar o potencial de crescimento.

P. Como seria essa agenda?

R. É uma agenda que passa por medidas de aumento de competição, com o exterior também faz parte, com uma abertura comercial. Passa por muitas reformas institucionais, mas provavelmente a mais importante é a reforma tributária. Essa discussão não tem a ver com a arrecadação e sim com produtividade. Ela atualmente é extremamente prejudicial à produtividade do país. Uma boa reforma tributária certamente ajudaria no potencial de crescimento da economia.

P. Qual a sua opinião sobre a polêmica que está sendo discutida sobre da redução de dívidas de Estados e municípios?

R. Se for aprovada essa tese dos Estados de juros simples, porque por enquanto o Supremo Tribunal Federal só concedeu liminares os autorizando a calcular a dívida nesse parâmetro de juros simples, a consequência é muito séria. O Governo Federal já calculou que 400 bilhões de reais serão reduzidas das dívidas dos Estados. Simplesmente quase toda a dívida dos Estados deixa de existir com a União e automaticamente eles abrem espaço para se endividar, viram credores. Ou seja, o efeito fiscal é muito grande. E se esse conceito de juros simples que eles estão interpretando na lei for estendido para outros setores da economia será um caos no sistema financeiro. É extremamente injusta a mudança. No final dos anos 90, os Estados tinham dívidas junto ao mercado, mas a União assumiu essa dívida e financiou os Estados. No entanto, essa dívida que a União assumiu paga juros compostos, então ela pegou um ativo e um passivo. Agora, os Estados chegam e dizem: o seu ativo agora é muito menor, porque o critério é juros simples, obviamente há um desequilíbrio enorme. Caso passe, será uma piora de expectativa enorme.

P. O senhor não é a favor do impeachment por não concordar com o argumento das pedaladas?

R. A pedalada de 2014 foi crime fiscal pela dimensão do estrago, mas a pedalada de 2015, os decretos são muito frágeis como argumento. A interpretação é muito forçada. O segundo problema é que você está vendo a presidente ser julgada por um Congresso de credibilidade baixíssima.

P. Acha que o processo pode não ser bem visto internacionalmente e diminuir investimentos?

R. Acredito que isso não deve afetar investimento estrangeiro no Brasil, o que pode afetar é o grau de reação se o Temer assumir. Já está previsto que haverá protesto, mas tudo vai depender do tamanho e do grau de instabilidade que pode ser gerada. É mais a reação das ruas que o processo em si. As instituições, por piorem que sejam, estão funcionando, o Congresso, o Judiciário, não vejo que isso seja visto como um enfraquecimento institucional do país.

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