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Após liberar pílula do câncer por pressão popular, Dilma é questionada no Supremo

Dilma sanciona lei que libera fosfoetanolamina, que estava em fase experimental para combater tumores Médicos vão a Supremo Tribunal Federal questionar liberação antecipada

Protesto pela regularização da 'fosfo' na Avenida Paulista, em novembro de 2015.
Protesto pela regularização da 'fosfo' na Avenida Paulista, em novembro de 2015.Reprodução Facebook

Entre as manifestações de brasileiros que saíram às ruas no fim de 2015, um protesto na Avenida Paulista chamou a atenção por defender uma causa diferente às usuais demandas políticas. Com máscaras cirúrgicas, as pessoas ostentavam faixas com dizeres como “tomara que você não precise da fosfo” e “a cura do câncer existe”. Pediam fervorosamente a liberação da “pílula do câncer”. Uma mulher sem o seio esquerdo pintou o corpo de azul e branco, em referência às cores da pílula, e sobre o peito mutilado escreveu: “Foi preciso, mas foi necessário?”.

Protestavam pela regularização da fosfoetanolamina sintética – a chamada “pílula do câncer” –, um composto criado por pesquisadores do Instituto de Química da Universidade de São Paulo em São Carlos e defendido por eles e por muitos portadores de tumores malignos como um objeto de tratamento bem-sucedido contra o câncer. O remédio foi objeto de estudo por mais de duas décadas do professor Gilberto Orivaldo Chierice, hoje aposentado, junto com outros cinco acadêmicos, e distribuído empiricamente a pacientes por 10 anos. Seu uso estava proibido devido à falta de testes definitivos sobre sua eficácia. Desde o dia 13, não está mais: Dilma Rousseff sancionou neste dia uma lei que libera o porte, o uso, a distribuição e também sua fabricação. Seus defensores comemoram a medida, enquanto cientistas criticam a presidenta por um ato que consideram "populista".

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A classe médica, contrária ao medicamento pela falta de testes clínicos que confirmem sua eficácia, decidiu reagir e recorreu ao Supremo Tribunal Federal por meio de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin). Na quarta-feira (20), o STF estabeleceu um prazo de cinco dias para que a presidenta explique as razões de ter liberado o uso de um remédio que não passou por testes clínicos exigidos pela legislação brasileira.

O tema é controverso. A fosfo, como a substância é popularmente chamada, não é um remédio reconhecido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) – que reagiu à sanção de Dilma com um comunicado de alerta. Para que a agência registre o composto como remédio, faltam análises que comprovem sua atuação no corpo humano, a despeito dos relatos favoráveis de usuários e de testes iniciais realizados em laboratório. Por essa razão, a classe médica e cientistas desaprovam seu uso e inclusive taxam a pílula de placebo. A Associação Médica Brasileira entrou com a Adin no Supremo por entender que a legislação que regula o uso de medicamentos foi violada.

O que é a fosfoetanolamina e como atua?

A fosfoetanolamina sintética foi desenvolvida pelo professor aposentado da USP de São Carlos, Gilberto Orivaldo Chierice, doutor em Química. A substância é produzida e distribuída na forma de cápsulas, daí o apelido "cápsula do câncer" ou "pílula do câncer". Sua pesquisa só existe no Brasil e chegou a ser objeto de reportagem – e também tema de um editorial – da revista Nature, considerada a mais importante revista científica do planeta. Existem muitos depoimentos positivos sobre ela e também dados reunidos por seus defensores em sites como este. A maioria deles descreve melhorias no estado geral de saúde, alguns falam de cura total.

O médico Renato Meneguelo, um dos pesquisadores brasileiros responsáveis pela criação da fosfoetanolamina, explica que ela representa “uma nova visão do tratamento contra o câncer”. “Ela é um marcador tumoral. O que ela faz é marcar a célula cancerígena para que o próprio corpo saiba que tem de combatê-la, através do sistema de imunidade”. Mesmo assim, recomenda-se que os tratamentos tradicionais contra o câncer sejam levados adiante.

Apesar de circular informalmente no país há mais de 20 anos, a "pílula do câncer" ficou famosa quando o Instituto de Química da USP de São Carlos, que a distribuía a doentes em tratamento, interrompeu o fornecimento. Houve reação popular, e a universidade passou a fornecer o composto aos que movessem uma ação judicial. Outro momento de fama da fosfo foi quando Dráuzio Varella condenou seu uso em uma participação sua no programa Fantástico, da TV Globo. O médico chegou a ser hostilizado nas redes.

Segundo Carlos Gil, pesquisador do Instituto D'Or e vice-presidente da Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, o movimento de Dilma, às vésperas da votação do impeachment na Câmara, visa à conquista de apoio político. "Não tem como não pensar que foi uma decisão política, populista. [É] Mais uma decisão que fere o fluxo científico e regulatório padrão no mundo para a aprovação de medicamentos. Continuo apoiando os estudos em curso no Brasil sobre a fosfoetanolamina, que poderão, de forma legítima, demonstrar ou não se a substância pode se tornar um medicamento anticâncer", declarou o especialista ao jornal OGlobo.

Clamor nas ruas

Nada disso, no entanto, interessa aos atingidos pela doença – pacientes e seus familiares –, que celebraram intensamente a sanção, nas ruas e especialmente nas redes sociais. Grupos como o A Cura do Câncer com Dr. Gilberto Chierice, que reúne milhares de seguidores no Facebook compartilhando relatos e dados sobre o tema, foram ao êxtase no dia seguinte à aprovação, quando a lei foi publicada no Diário Oficial da União – menos de duas semanas depois da aprovação do projeto pelo Senado. Para a administradora do grupo, Polyana Borges, cujo pai luta contra um câncer já em fase de metástase, “é uma conquista histórica para as famílias que têm o direito de lutar pela vida de seus entes queridos”. Ela descobriu a fosfoetanolamina em setembro de 2015, pesquisando sobre alternativas de tratamento para o pai e se tornou uma ativista da causa. Para ter acesso à fosfo naquele momento, era preciso entrar na Justiça, e isso significava um gasto com advogados. Hoje, com a lei, Polyana espera que seu pai tenha acesso ao tratamento sem ter que entrar com uma ação.

No entanto, o cenário futuro da “pílula do câncer” ainda é confuso, em vários sentidos. A lei 13.269 –   ressalta que só "poderão fazer uso da fosfoetanolamina sintética, por livre escolha", os pacientes que apresentarem "laudo médico que comprove o diagnóstico" e "assinatura de termo de consentimento e responsabilidade pelo paciente ou seu representante legal”. Além disso, esclarece que a produção da pílula só cabe a “agentes regularmente autorizados e licenciados pela autoridade sanitária competente”.

“Mal não faz”

Uma verba de 10 milhões de reais foi disponibilizada pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação para avaliações sobre a fosfoetanolamina, da qual dois milhões já foram gastos em testes pré-clínicos. Os resultados até o momento, porém, não são promissores. Feitos com células in vitro e ainda não conclusivos, os testes iniciais não mostraram toxidade – comprovando que "mal não faz" –, mas só uma das substâncias do composto se mostrou eficiente. Alegando que a concentração utilizada da substância não é a mesma do composto que criaram, os pesquisadores da fosfo questionam as análises. Em nota, o doutor em Imunologia Durvanei Maria, afirma que a substância não pode ser comparada aos quimioterápicos convencionais, pois suas ações são distintas.

Protesto na Avenida Paulista, em 2015.
Protesto na Avenida Paulista, em 2015.Reprodução Facebook

O próximo passo é a comprovação em seres humanos. Um laboratório de Cravinhos (SP), o PDT Pharma, foi autorizado pela Anvisa a receber as máquinas necessárias para a produção da substância. Assim se pretende iniciar a sintetização do composto para os testes clínicos anunciados pelo Governo estadual de São Paulo, que concentra a operação. “Vamos qualificar os equipamentos. Depois, vamos escrever os documentos que são POPs, procedimentos operacionais padrão, e também adequar ao Manual de Boas Práticas de Fabricação exigido pela Anvisa”, explicou a farmacêutica do laboratório, Ana Paula Silva, ao G1. Depois disso, a Vigilância Sanitária deve fazer as verificações necessárias e dar o aval para a produção. Do laboratório, o composto será encaminhado para a Fundação para o Remédio Popular (Furp) de Américo Brasiliense, responsável por encapsular a substância, e em seguida para o Instituto do Câncer do Estado de São Paulo (Icesp) – que vai coordenar os testes em humanos. 

Ainda não está claro como e quando a fosfoetanolamina chegará à população. Para um dos seis pesquisadores do composto, o médico e mestre em Bioengenharia Renato Meneguelo, tampouco se sabe se ele será liberado para todos os diagnosticados com câncer ou apenas para pacientes em fase terminal. “Nossa ideia desde o início do projeto era atender pacientes em tratamento paliativo, porque a substância melhora significativamente a qualidade de vida do doente terminal. Mas o composto foi sendo difundido, e hoje a procura é grande por todos”, conta o pesquisador, que afirma, como seus colegas, que nunca foi buscado para a discussão dos testes.

Ele estima que o laboratório da USP de São Carlos chegou a entregar regularmente – e "sem cobrar nada por isso" – cerca de 50.000 cápsulas ao mês, até interromper a distribuição. “Resta saber agora como vão operacionalizar a lei. Só sei que vai ter que ser rápido, porque a população descobriu que a fosfo funciona e vai ficar em cima”, garante o médico.

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