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A história do sapateiro sem pés nem sapatos

Ailton Pontes perdeu as pernas em um acidente de trem 37 anos atrás, hoje conserta sapatos numa rua de Rio de Janeiro

Ailton Pontes conserta sapatos em uma rua do Rio.
Ailton Pontes conserta sapatos em uma rua do Rio.M.M.
María Martín

Em Cachoeiro de Itapemirim, no Espírito Santo, a mesma cidade onde o rei Roberto Carlos caiu nos trilhos em 1947 e perdeu a perna direita, Ailton Matias Pontes viveu, 37 anos depois, uma tragédia parecida. Um comboio de 16 vagões passou por cima dele e decepou metade do seu corpo, quase na altura do quadril, e o condenou, aos 22 anos, a uma invalidez. Mas Ailton não desabou. “Meu mundo não caiu. Não é para reclamar, a vida não é do jeito que a gente quer, é como ela vem. Viver é uma arte, eu nem corria nem jogava bola, então não faz diferença”, brinca ele.

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Mais de 37 anos depois do acidente, Ailton, que recebe cerca de 1.200 reais por mês em indenizações, trabalha seis dias por semana consertando sapatos no chão de uma rua do Rio de Janeiro. A tragédia o tornou uma espécie de super-homem, que se diz alheio a qualquer fraqueza, sem dor e sem tristezas. O pior dos temores de Ailton é depender de algo ou alguém: ele não usa cadeira de rodas, nem pernas ortopédicas e mora num sétimo andar sem elevador. Seu único apoio é um protetor artesanal feito com um pedaço de borracha do interior de um pneu de caminhão e uns quantos cintos que seguram seu tronco. Com ele, consegue proteger sua pele enquanto empurra o corpo com as mãos no chão. Essa é sua maneira de se locomover em uma cidade onde a mobilidade para pessoas como ele pode se tornar um inferno. “Já sofri muita humilhação. Taxista no Rio não quer pegar deficiente, os motoristas de ônibus não têm paciência, há quem passa por aqui e me oferece esmola... Eu me ofendo. Trabalhador não precisa de esmola” , lamenta Ailton.

Ailton é dos tempos, e da classe social, em que as crianças aprendiam desde cedo uma profissão. Na quarta série, ele já era aprendiz de sapateiro, até que perdeu seu pai em um atropelamento e sua mãe, de um infarto, com apenas uns dias de diferença, e teve que começar a trabalhar "de verdade". Com 10 anos sua família se desintegrou, deixou a escola e começou um périplo entre sua cidade natal, Vitória, Campos dos Goytacazes e Rio de Janeiro trabalhando, entre outras coisas, como pedreiro. “Nada, nem o acidente, me deu tanta tristeza como aquela perda”, lembra Ailton rodeado de sapatos, potes de cola no chão, e malas cheias de cadarços. "Mas eu não lembro a última vez que fiquei triste".

Após o choque com o trem, em 1979, Ailton procurou trabalhos onde não precisasse das suas pernas. Candidatou-se em vagas de cobrador de ônibus e ascensorista, mas o recusavam por não ter completado o primeiro grau. “Você precisa de estudos até para isso”, alerta ele. “Quando perdi meus pais me chamaram para roubar, e quando perdi as pernas, [me chamaram] para pedir esmola. Eu tinha tudo para acabar perdido, mas sempre quis trabalhar, o trabalho engrandece as pessoas”.

Ailton é um homem de sonhos simples. Há anos que gostaria de ter se tornado mecânico – sempre ficou boquiaberto nas oficinas – mas, nessa altura, ele quase renunciou. Por outro lado, há uns anos atrás, cumpriu seu desejo de comprar um carro e não enfrentar mais ônibus nem taxistas. “Era uma necessidade, mais do que um sonho, né?”, lembra. Completamente adaptado e automático, o carro custou 34.000 reais, uma pequena fortuna para um sapateiro. O último dos seus sonhos, que Ailton já deixa nas mãos da loteria, seria comprar uma casa térrea, sem escadas, e com algumas galinhas. Com 59 anos, seus braços, que carregam todo o peso da sua vida, ameaçam em começar a falhar. Sem eles em plena forma, Ailton acha que deixaria de ser o super-homem em que se transformou.

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