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O apogeu de Trump expõe o racha político e social dos Estados Unidos

O ‘trumpismo’ é uma reação furiosa à presidência do democrata Barack Obama

Marc Bassets
“A maioria silenciosa está com Trump”, diz este cartaz, em um comício em Nova Orleans (Louisiana).
“A maioria silenciosa está com Trump”, diz este cartaz, em um comício em Nova Orleans (Louisiana).Gerald Herbert (AP)
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Ninguém viu Donald Trump chegar. Como foi possível que, em poucos meses, um homem sem experiência política deixou de ser uma figura dos reality shows para ser um aspirante sério à Casa Branca? É uma pergunta que ocupará os analistas durante décadas. O trumpismo é uma reação furiosa à presidência do democrata Barack Obama, uma lente aumentada e distorcida da virulenta oposição ao presidente.

Também é uma resposta às mudanças econômicas e demográficas aceleradas. E, ainda que seja um fenômeno muito novo, tem suas raízes em tradições de populismo e exclusão na história deste país.

A sucessão de vitórias de Trump nas eleições primárias e nas convenções partidárias (caucus) o aproximam da nomeação para ser o candidato do Partido Republicano nas eleições presidenciais de novembro.

A situação ruim da classe trabalhadora branca, corroída por décadas de salários estancados e desigualdades crescentes, pode explicar o fenômeno Trump. Ou o racismo latente em partes da sociedade. Ou ainda o temor das mudanças aceleradas da globalização.

A ansiedade

Já se falou de descontentamento ou até mesmo de raiva para entender as motivações dos eleitores.

Uma emoção que talvez ajude a entender o trumpismo é a ansiedade. Shana Kushner Gadarian, cientista política da Universidade de Syracuse (Nova York), é coautora, ao lado da colega Bethany Albertson, de Anxious Politics (“Política ansiosa”, em tradução literal), livro publicado em setembro passado, em pleno auge de Trump.

“A ansiedade política vem de uma sensação de incerteza e é um sentimento negativo, incômodo”, afirma Gadarian, por e-mail. “Para muitos americanos que estão passando por dificuldades financeiras, existe uma sensação de precariedade que os faz questionar a futura segurança econômica deles próprios, de suas famílias e do país. A isso se soma uma ansiedade profunda entre certos segmentos da população em relação às mudanças demográficas e culturais que ocorreram a um ritmo rápido nas últimas décadas nos Estados Unidos”.

Gadarian cita a diversidade racial e a ascensão à Casa Branca de um afroamericano, ou ainda a conquista dos direitos civis por gays e lésbicas. O país de algumas décadas atrás está irreconhecível.

Ansiedade + raiva: esta seria a fórmula Trump. “Enquanto a ansiedade leva as pessoas a querer se sentir protegidas, a raiva as impele a querer culpar e castigar aquele que, para elas, é o responsável pela ofensa”, afirma a analista. O “castigo” agora pode se dirigir aos muçulmanos, a quem Trump proibiria a entrada no país, ou aos 11 milhões de imigrantes ilegais, que ele quer deportar.

Longa tradição

“Trump é uma mistura de populista de direita, famoso egocêntrico e homem de negócios que acredita que, por ter ganho muito dinheiro, é capaz de administrar a economia americana e gerenciar um sistema político”, diz Michael Kazin, historiador da Universidade de Georgetown, em Washington, co-diretor da revista Dissent e autor de The Populist Persuasion (“A persuasão populista”), onde define o populismo mais como uma retórica do que como uma ideologia. “Há paralelismos com tudo isso na História americana”.

Kazin cita Henry Ford, o magnata da indústria automobilística que cultivava um discurso antissemita e que foi cortejado por democratas e republicanos para ser candidato nos anos vinte. Antes disso, há semelhanças com o Partido Americano de meados do século XIX, conhecido como os Know-Nothing (“não sabem nada”). “Sua agenda consistia em dificultar que os imigrantes se tornassem cidadãos americanos”, conta. “Eles se opunham especialmente aos imigrantes católicos: irlandeses e alemães. Acreditavam que eles roubavam o trabalho dos americanos protestantes e os viam como escravos do Papado”. A ironia é que Trump descende de imigrantes alemães.

Outro possível precedente é, nos anos sessenta do século XX, o governador segregacionista do Alabama George Wallace, um democrata que se apresentou às eleições presidenciais agitando o medo e o ressentimento da classe média branca diante das mudanças sociais que ocorriam na época. “Ele usa as frustrações da classe trabalhadora branca com seus problemas financeiros e a sensação de que o Estado não se preocupa com eles – mas sim com negros, no caso de Wallace, e latinos e negros, no caso de Trump. Ele usa isso para obter votos de pessoas que, de outra maneira, votariam nos democratas”.

O antecedente do Tea Party

A socióloga de Harvard Theda Skocpol, coautora de The Tea Party and the Remaking of Republican Conservatism (“O Tea Party e a remodelação do conservadorismo republicano”), vê uma continuidade entre esse movimento, que em 2009 e 2010 capitaneou a oposição a Obama, e Trump. Ainda que o Tea Party fosse sobretudo um movimento anti-impostos e contrário ao intervencionismo estatal, suas bases se preocupavam com a imigração e temiam os muçulmanos, segundo a analista

Skocpol menciona tensões entre as gerações em um país onde o bem-estar social é generoso com os idosos mas muito escasso com os mais jovens e com as pessoas de baixa renda. Muitos seguidores do Tea Party não se opunham ao intervencionismo estatal, como diziam os slogans do movimento: eles defendiam os benefícios públicos para eles – brancos e mais velhos – e não para as novas gerações, mais diversas etnicamente.

Segundo Skocpol, a revolta nas bases do Tea Party devia-se “ao fato de o Governo de Barack Obama estar deslocando recursos deles para pessoas que eles consideravam não americanos ou não bons trabalhadores”. Puro Trump, que se opõe ao dogma anti-intervencionista de seu partido, o republicano, e é contrário aos cortes das pensões e da saúde pública para os maiores de 65 anos.

A responsabilidade do Partido Republicano

Michael Grunwald, autor de The New New Deal (“O novo New Deal”, uma crônica do plano de estímulos com o qual, em 2009, Obama ajudou a tirar o país da Grande Recessão), questiona a explicação unicamente econômica para o fenômeno Trump.

Grunwald recorda que desde 2010, a taxa de desemprego caiu de 10% para 5%; que há 72 meses os Estados Unidos vêm gerando empregos, com mais de 14 milhões de novos postos de trabalho; que, ainda que os salários tenham aumentado muito pouco, a gasolina está barata; que o número de pessoas sem assistência médica caiu a mínimos históricos; que os custos da saúde crescem ao ritmo mais lento do último meio século; e que a inflação está baixa. “Apesar de a desigualdade ser um problema real, as famílias normais têm mais segurança e mais dinheiro no bolso”, afirma.

Segundo Grunwald, a explicação para Trump está nas atitudes recentes do Partido Republicano, que assiste com espanto à sua ascensão. “[Trump] é o mais atraente para muitos eleitores das primárias republicanas que, durante sete anos, ouviram que Obama era um usurpador ilegítimo que está matando a América”.

Trump triunfa porque é o anti-Obama: indignado em vez de calmo, exagerado em vez de realista, um branco empreiteiro bilionário em vez de um negro líder comunitário, que era o trabalho de Obama em sua juventude.

Grunwald lembra que, nas eleições legislativas de 2014, havia candidatos republicanos que advertiam que terroristas islâmicos poderiam introduzir o vírus ebola no país através da fronteira com o México. “E é assim que acaba surgindo Trump”, acrescenta. Ou, em outras palavras, Trump seria um monstro nascido da retórica descontrolada do Partido Republicano.

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