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30 anos sem o sambista Nelson Cavaquinho, poeta do juízo final

Nos sambas do compositor desfilam letras sobre desamores, despedidas e morte

O músico em documentário de Leon Hirszman, de 1969
O músico em documentário de Leon Hirszman, de 1969Divulgação
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Há 30 anos Nelson Cavaquinho desaparecia (dessa vez em definitivo) pela segunda vez na vida. Apesar de seus dois sumiços – ou de suas duas mortes, como provavelmente ele gostaria – sua figura continua sendo enigmática. Morreu em 1986, aos 74 anos, no Rio de Janeiro, mas sua voz rouca, suas músicas sombrias – que falam de desamores, despedidas e morte – ainda desnorteiam: não há em Nelson nenhum resquício do estereótipo do samba como uma música alegre, feita para agradar.

A primeira vez em que Nelson Cavaquinho desapareceu foi pouco antes da década de 1950. Nascido em 1911, fez sucesso até a metade do século passado quando a época áurea do samba (marcada por figuras como Carmem Miranda, Dalva de Oliveira e Dorival Caymmi) acabou. Ele e seu amigo Cartola, compositor de clássicos, como O Mundo é Um Moinho e As Rosas Não Falam, passaram anos de ostracismo artístico. Até que no início de 1960 foram redescobertos pela classe média carioca que buscava novos ares nos velhos morros cariocas.

Quando voltou, Nelson Cavaquinho já abandonara o cavaquinho que tinha lhe rendido o apelido na juventude. Seu instrumento agora era o violão, que ele tocou de forma única. Saído diretamente de um túnel do tempo, ele recendia há uma época passada, esquecida – ou que ao menos queria se esquecer. Se o Brasil se profissionalizava, Nelson era o símbolo do improviso, do amadorismo. Se éramos o país do futuro, ele era nosso passado de pé no chão. “Muito mais do que arcaico, Nelson parece ter nascido extemporâneo, na contramão da ‘promessa de felicidade’. É desse patamar que Nelson e Cartola compõem, esquecidos, mas também preservados”, escreveu no artigo Rugas, o artista plástico e ensaísta Nuno Ramos.

No entanto, ao contrário de Cartola que se fixou como um dos maiores sambistas brasileiros, Nelson Cavaquinho também é lembrado, mas em segundo plano. É que junto ao seu nome não é possível usar qualquer adjetivo que proponha sutileza ou conforto. Enquanto Cartola oferecia respostas e conselhos em suas músicas – Preste atenção, querida/ Embora eu saiba que estás resolvida/ Em cada esquina cai um pouco a tua vida/ Em pouco tempo não serás mais o que és –, Nelson oferecia incômodo puro e simples.

Documentário de Leon Hirszman, filmado em 1969

Em Nelson Cavaquinho, sambista e poeta, tudo remete ao final. Se, por exemplo, fala em folhas, lembra-se das secas. No Carnaval não há confete ou purpurina, mas partida para sabe-se lá quando voltar. E até sua barriga, na gíria cômica inventada por ele próprio, vira um cemitério de frango. Se o samba é muitas vezes um gênero que desconhece autores, confundindo-os nas coletâneas em que intérpretes desfilam pout-pourris recheados de clássicos, Nelson Cavaquinho é inconfundível.

Suas letras são sombrias, sua voz é rasgada, esculpida pelo excesso de álcool e tabaco barato. O modo como toca violão, usando apenas o polegar e o dedo mínimo, é dissonante, forte. Em um de seus sambas mais famosos, Nelson ordena: Tire o seu sorriso do caminho/ Que eu quero passar com a minha dor. Em outro, anuncia: É o Juízo Final, a história do bem e do mal/ Quero ter olhos pra ver, a maldade desaparecer. E, num terceiro, pede: Me dê as flores em vida/ O carinho, a mão amiga/ Para aliviar meus ais/ Depois que eu me chamar saudade/ Não preciso de vaidade/ Quero preces e nada mais.

Suas letras são sombrias, sua voz é rasgada, esculpida pelo excesso de álcool e tabaco barato. O modo como toca violão, usando apenas o polegar e o dedo mínimo, é dissonante, forte.

Nenhuma história poderia ser mais Nelson Cavaquinho do que a do próprio Nelson Cavaquinho. Obcecado pelo final, ele viu seu fim ainda em vida e depois voltou só para lembrar os brasileiros, empolgados pela invenção da bossa-nova, pela vida dourada da zona sul carioca, do barro de que também eram feitos. Seu estilo, como escreveu Ramos, era uma espécie de anti-João Gilberto. Enquanto um busca o minimalismo, a sutileza, o outro escancarava as dores de se estar vivo. Ainda segundo o ensaísta, há no sambista o desejo e a recusa do moderno, coisa que caracteriza quase tudo o que o Brasil almeja ser. “Em Nelson, a vida é o que é, num certo sentido, aquilo que sempre foi. Por isso, não carrega ansiedade nem projeto. Parece tão desejável quanto a morte”.

E, contudo, apesar de ser provavelmente o sambista que mais escreveu sobre o fim, a imagem que talvez melhor defina sua personalidade é a do mito que diz que ele próprio, Nelson Cavaquinho, tremia de medo ao pensar em seu juízo final. Conta-se que ele passou uma madrugada inteira atrasando o relógio: a ideia era que, desse modo, ele poderia enganar a morte. Sabe-se hoje que a tática não deu certo, mas Nelson, de um jeito ou de outro, ao mexer nos ponteiros, conseguiu permanecer parado no tempo, dentro do passado de onde veio. E, por isso mesmo, é hoje uma ponte para o que o Brasil foi e deixou de ser.

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