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Depois das bombas, crianças refugiadas enfrentam as máfias

ONG entregam celulares para tentar proteger à distância os menores que cruzam para os Bálcãs

Um menino, na segunda-feira, ao chegar ao porto de Pireu (Grécia).Foto: atlas | Vídeo: AFP

A presença de seis rapazes de bochechas peludas na colorida barraca que serve como sala de jogos para as crianças refugiadas parece um absurdo. Mas esses homens são meninos argelinos, com idades entre 15 e 17 anos, todos residentes no mesmo bairro de Constantina, do nordeste do país. Chegaram a Idomeni, na fronteira entre a Grécia e a Macedônia, em grupo, numa viagem de dois meses, para tentar a vida na Europa. Ao contrário dos refugiados e de outros migrantes adultos, eles têm proteção oficial e, especialmente, das organizações não governamentais que operam no acampamento. A filial local da organização Save the Children estima em 26 mil o número de menores não acompanhados que chegaram à Europa em 2015, a maioria deles através da Grécia. “O menor que tivemos foi um sírio de 12 anos. Agora ele está num centro para menores”, explica Iota Gatsi, da Save the Children. O preocupante relatório da Europol sobre o desaparecimento de 10.000 crianças que viajavam sozinhas desencadeou os alertas, mas parece que na Grécia estão bem situadas.

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O procedimento de emergência quando um caso é detectado funciona, diz a trabalhadora humanitária. “A polícia se encarrega deles, que são identificados e submetidos a exames médicos forenses, enquanto nós pedimos vaga nos albergues mais próximos”, acrescenta Gatsi. “Deve-se notar que, apesar da crise econômica que enfraqueceu a maioria dos serviços sociais, a proteção à criança ainda funciona. Uma vez no abrigo, recebem comida, documentos e assistência psicológica e podem ficar o tempo que quiserem”.

No mesmo lugar –é a única área de lazer do acampamento, onde duas crianças sírias disputam uma bola e algumas meninas desenham infinitas casas em ruínas e barracas de campanha–, Ussama e seu amigo Emin, ambos de 17 anos e de Casablanca, estão preocupados com o futuro imediato. “Nos disseram que temos de ir durante alguns dias à prisão”, protestam. “Não, para uma delegacia de polícia, para que vocês sejam identificados e fichados”, tranquiliza-os Gatsi. “Estamos desesperados, já estamos aqui há três dias e agora nos levam para a polícia”, resmungam, enquanto Ussama mostra em seu celular imagens de um quarto imundo, com banheiros inutilizáveis e colchonetes no chão. O jovem marroquino diz que foram enviadas por um conhecido, também menor, de uma delegacia de polícia nas proximidades, onde passou vários dias.

Mas nem Ussama nem o amigo se amedrontam diante de uma estadia em uma delegacia de polícia de uma localidade perdida no norte da Grécia. Eles já enfrentaram muitas adversidades para se sentirem intimidados pela sujeira entre quatro paredes. Ambos não vão parar até chegar à Itália e à França, onde seus respectivos irmãos vivem. “No primeiro navio que pegamos em Izmir [Turquia] para atravessar até Lesbos, tinha gente armada a bordo, os smugglers [traficantes]. Esse barco virou logo depois de zarpar, mas fomos resgatados. Outros morreram”, diz Emin calmamente.

Muitas crianças têm sintomas de estresse pós-traumático por causa das experiências vividas em seus países de origem (guerras, perseguição), ou simplesmente pelas dificuldades da viagem. “Eles se fecham em si mesmos, experimentam terrores noturnos ou não dormem. São vítimas”, diz a trabalhadora humanitária, apontando para o canto da barraca onde eles passam a noite, sozinhos, para poupá-los do estresse de conviver em dormitórios coletivos lotados, com famílias com bebês e homens adultos. “Muito vulneráveis também são as mulheres que viajam sozinhas com um monte de crianças; não são apenas os menores não acompanhados que correm perigo”, acrescenta Gatsi. Mulheres e crianças representam quase 60% dos refugiados que chegam à Macedônia, de acordo com um relatório divulgado na terça-feira pelo UNICEF.

Todo esforço é pouco para evitar que os menores caiam nas mãos dos traficantes que, por 800 euros, prometem levá-los até a fronteira

As autoridades gregas estimam em 2.800 o número de crianças que atravessaram o país só entre outubro e fins de dezembro de 2015. “Mas as autoridades da antiga República Iugoslava da Macedônia (FYROM, na sigla em inglês) garantem que foram 18.000” no mesmo período, conta Gatsi perplexa. “Não há números confiáveis, mas de acordo com nossa contagem, podemos falar de uma dúzia de menores por semana; de qualquer maneira, é difícil manter o controle porque às vezes a polícia vem e pretende colocá-los nos ônibus” que devolvem os migrantes sem documentos a Atenas. De acordo com a ONG grega Arsis, responsável pela área infantil de Idomeni, o campo recebeu 150 menores desacompanhados em novembro. Todos foram encaminhados para a rede de abrigos que a organização gerencia.

Ambas as ONGs preparam em Idomeni, com a ajuda do ACNUR (agência da ONU para os refugiados), um galpão para cuidar melhor das crianças. Todos temem que a primavera, com o bom tempo, faça disparar novamente as chegadas provenientes da Turquia. Mas a área infantil também é um lugar de trânsito: muitas das crianças irão para a FYROM assim que puderem. Como Ussama e Emin ou os meninos argelinos. E ninguém pode impedi-los, mesmo que os documentos proporcionados pelos centros de acolhida sirvam só para a Grécia e não como documento de viagem. “Se finalmente eles decidem atravessar [a fronteira], nós só podemos explicar-lhes os perigos que correm e, se insistirem, faremos um acompanhamento à distância, ou seja, enviaremos os dados e o trajeto deles para outras ONGs do caminho para tê-los localizados e ajudá-los. Também damos telefones celulares com baterias recarregáveis por energia solar, ou seja, tentamos guiá-los e tutelá-los à distância”, diz a responsável da Save the Children.

Todo esforço é pouco para evitar que caiam nas mãos dos traficantes que, por somas entre 700 a 800 euros, prometem levá-los até a fronteira sérvia. Ussama e Emin sonham com a chegada desse momento. “Nos disseram que já têm vagas para nós em um albergue, mas não somos crianças, eles não podem nos tratar como se fôssemos, eles têm que nos deixar ir”, dizem ingenuamente. Mas atravessar os Bálcãs não é uma brincadeira infantil. “Há uma rede internacional de voluntários, uma organização absolutamente informal, que também os ajuda a atravessar gratuitamente a floresta ou o rio, algo que as máfias que lucram com esse drama não apreciam”, diz Viki Lilí, psicóloga infantil da ONG Praksis. “Você ouve tantas coisas... crianças que desaparecem, tráfico de órgãos... Mas eu, felizmente, não vi nada”.

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