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Crianças nascidas de cesárea já podem receber bactérias vaginais da mãe

Método banha bebês na flora bacteriana materna, igualando o microbioma ao dos nascidos via vaginal

Miguel Ángel Criado
Maioria dos partos no Brasil é via cesárea.
Maioria dos partos no Brasil é via cesárea.FRANK HERHOLDT

A grande diferença entre as crianças nascidas de parto normal e as nascidas via cesárea são as suas bactérias. As primeiras se banham, literalmente, na flora vaginal da mãe. No microbioma das segundas, no entanto, predominam os micróbios da pele materna. Sabendo-se que as colônias bacterianas são vitais para os sistemas digestivo, metabólico e imunológico do bebê, começariam a vida em desvantagem aqueles que saem pela barriga?

Um grupo de pesquisadores bolou uma maneira original para averiguar isso e, se for o caso, restaurar a microbiota das crianças. Introduziram algumas gazes esterilizadas na vagina de várias mães que dariam à luz por via cesariana. Assim que os bebês nasceram, eles passaram essas gazes em suas bocas, rostos e no corpo todo. Depois de analisar a sua flora bacteriana e compará-la com a de suas mães, eles comprovaram que o microbioma dos bebês nascidos por parto abdominal e banhados pelas bactérias de suas mães se parecia mais com o dos recém-nascidos por parto vaginal do que com o dos nascidos via cesárea que não passaram pela aplicação dessas gazes.

“Antes de nascer, os bebês se desenvolvem em um ambiente livre de bactérias. É ao passar pelo trato vaginal que eles recebem um banho delas”, afirma José Clemente, professor da Escola Icahn de Medicina do Hospital Monte Sinai de Nova York e coautor dessa primeira restauração, ao menos em seres humanos, do microbioma em recém-nascidos por via cesariana.

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O biólogo lembra que as bactérias vaginais desempenham uma função essencial para a mulher, que é a de formar uma barreira contra infecções. “Os lactobacilos, a espécie mais presente na flora vaginal, podem inibir o crescimento de outras bactérias”, comenta. As bactérias do ácido lácteo alteram o pH evitando a colonização por potenciais patógenos. Mas muitos cientistas, dentre eles Clemente, estão convencidos de que as bactérias vaginais da mãe cumprem também uma outra função, tão vital como a primeira, mas, no caso, para os seus filhos.

“Esta microbiota vaginal constitui a primeira inoculação bacteriana sofrida pelo bebê ao passar pelo canal do parto, e a nossa hipótese é de que ela é fundamental para um desenvolvimento adequado do sistema imunológico. Esta primeira exposição poderia ter consequências de longo prazo, como sugerem muitos estudos que associam o parto por cesárea ao risco de doenças autoimunes”, coloca Clemente.

Nas últimas décadas tem ocorrido dois fenômenos que se desenvolvem paralelamente, mas com evidências que relacionam um ao outro cada vez mais. Por um lado, não para de crescer o número de partos via cesariana, embora segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), em somente entre 10% e 15% dos nascimentos é necessária essa intervenção para proteger a saúde da mãe ou do bebê. No entanto, a proporção de partos envolvendo a cirurgia é bem maior em várias partes do mundo. O Brasil é o caso mais destacado em toda a América, onde 55,6% dos partos são programados e via cesárea.

Ao mesmo tempo, a incidência de doenças relacionadas ao sistema imunológico, como a asma, a artrite juvenil e diversas inflamações intestinais, tem aumentado. Entre as causas disso estariam as mudanças na dieta e o uso excessivo de antibióticos. Mas vários estudos epidemiológicos com crianças acompanhadas ao longo de alguns anos também mostraram que esse tipo de enfermidade encontra presença maior naquelas nascidas por via cesariana. Porém, com exceção de alguns estudos feitos com ratos, ainda não foi demonstrada uma relação causal entre a forma do nascimento, as bactérias e as doenças de que são acometidas as crianças.

Vários estudos mostraram que os nascidos de cesárea contraem mais doenças autoimunes

“Se o microbioma primário é importante para definir aquilo que se sucede ao parto, então, carecer dessas bactérias só pode afetar o desenvolvimento do microbioma”, afirma a pesquisadora María Domínguez-Bello, da Universidade de Nova York. A microbióloga foi quem teve a ideia de transferir as bactérias vaginais das mães para os filhos nascidos de cesáreas.

Domínguez-Bello já havia demonstrado, em 2010, que o tipo de parto determina o perfil bacteriano dos filhos. Os bebês nascidos por cesárea não entram em contato com a flora vaginal, daí que não se encontrem entre os seus primeiros colonizadores, a não ser em porções muito limitadas, os bacteroides e lactobacillus, gêneros que, uma vez instalados no intestino, produzem a maior parte da digestão no bebê. Além de decomporem o leite, as colônias intestinais produzem uma série de vitaminas que o corpo humano não é capaz de gerar por conta própria. Mais do que isso, acumulam-se provas de que essas primeiras colônias funcionam como treinadores do sistema imunológico.

“Embora ainda não tenhamos comprovado isso, a nossa suposição é de que essa restauração deveria se refletir em uma diminuição do risco de enfermidades que afetam mais os bebês que nascem de cesárea”, comenta a cientista porto-riquenha. Na revista Nature Medicine, Domínguez-Bello e Clemente explicam como deram os primeiros passos no sentido de provar essa suposição. Depois de selecionar 18 mães grávidas, recolheram amostras de sua flora bacteriana vaginal, da região anal, da boca e da pele.

“Nossa hipótese é de que a microbiota vaginal é fundamental para um desenvolvimento adequado do sistema imunológico”

Sete mulheres iam dar à luz pela vagina; as outras 11, por cesárea. Para comprovar a pertinência da sua ideia, em quatro delas foram introduzidas a gaze por uma hora, pouco antes do início da cirurgia. Nos dois primeiros minutos posteriores ao parto, aplicou-se a gaze em várias partes dos bebês. Em seguida, durante um mês e a cada determinado intervalo de tempo, os médicos recolheram amostras da flora das mães e dos filhos. Dessa forma, puderam comprovar que os nascidos de cesárea e banhados com a gaze exibiam um microbioma mais vaginal do que os que não passaram pelo banho bacteriano.

Mas um mês é pouco tempo para comprovar que é possível restaurar o microbioma e que essa restauração possui um impacto positivo para a saúde das crianças. Por isso, os cientistas já deram início a uma segunda fase de sua pesquisa, que inclui mais mães e crianças, por mais tempo. Como afirma Domínguez-Bello, “é necessário um estudo amplo e longo (pelo menos 3 anos de acompanhamento) para avaliar a saúde das crianças”.,

Já Clemente lembra que somente um estudo mais amplo e prolongado permitirá que se responda a três importantes perguntas: “Quanto tempo duram as alterações que observamos durante o primeiro mês? Existem efeitos benéficos para a saúde do bebê decorrentes desse procedimento? Quais bactérias, precisamente, são responsáveis por esses benefícios?”. Embora essas respondas ainda estejam longe de ser formuladas, esse trabalho estabeleceu as bases para se entender como o microbioma, na infância, protege contra ou favorece o desenvolvimento de doenças autoimunes e como a forma de nascer determina a saúde no futuro.

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