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Coluna
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O Brasil é ‘A Regra do Jogo’

O novelista João Emanuel Carneiro retrata o funcionamento do esquema mafioso com a sensibilidade que o jornalismo não alcança ou se recusa a encarar

Alexandre Nero e Vanessa Giácomo nas gravações de 'A Regra do Jogo'.
Alexandre Nero e Vanessa Giácomo nas gravações de 'A Regra do Jogo'.TV GLOBO (Divulgação)

Não adianta, amigo, buscar na avexada, suspeita e seletiva objetividade dos jornais, telejornais ou no mundo on-line. A sofisticada crônica de costumes da sociedade brasileira está na ficção popular. No país em que, segundo o folclore atribuído a Tim Maia, “puta goza, traficante é viciado e o dólar paralelo é mais baixo que o dólar oficial”, a telenovela é mais real que o noticiário, óbvio.

É nA regra do jogo que está o sentido do país no momento, com o mocinho-bandido e o bandido-mocinho, com o herói sem nenhum caráter pós-Macunaíma... Sem o maniqueísmo romano da sombra contra a luz, do bem contra o mal. Sinto muito, torcida organizada das redes sociais, tudo é mais “vida loka” e subjetivismo.

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O novelista João Emanuel Carneiro, nosso Balzac das massas, retrata o funcionamento do esquema mafioso com a sensibilidade que o jornalismo não alcança ou se recusa, no momento, a encarar. Talvez não interesse tanto, sei lá... O jornalismo quase não considera o demasiadamente humano.

E chega de dramaturgias e mentiras comparadas. Falemos do atordoado Romero Rômulo. Que personagem! Que ator sobrenatural esse rapaz curitibano com batismo incendiário. Alexandre Nero, monstro-mor. O planeta ongueiro de morro pode ficar meio puto com as ações do moço. Acontece. Tem ONG séria, tem ONG de fachada. Com RR nada é tão simples assim: o ongueiro e o seu duplo.

O arroz com feijão e carne moída da Toia (Vanessa Giácomo) ou o kobe beef de Atena (Giovanna Antonelli)? Se vira, seu Romero lero-lero. O melhor de tudo: dois corações suburbanos, ninguém “sofisticado” de berço. Isso não é dúvida, isso é dupla Sena, diria meu amigo Tonico Pereira — o maior ator do Brasil —, o velho desgraçadamente genial Ascânio, óbvio, meu canalha favorito.

Ninguém, ao contrário do noticiário óbvio, é 100% do bem ou 100% do mal. O que custa o jornalismo imitar um pouco a ficção/vida, como diria o poeta pernambucano Sebastião Uchoa Leite?

Talvez custe perder a objetividade seletiva. Não é um bom negócio. Pensar que a vida não é assim tão esquemática é hoje um privilégio dos nossos ficcionistas. E não só na televisão. Repare no “Luxúria” (editora Record), livraço de Fernando Bonassi, vixe, com a morte a crédito, o enforcamento de quem subiu na vida somente pós governo Lula, merecidamente, e hoje se vê em dívidas e pequenas piscinas no volume morto da existência. Narrativa incrivelmente linda.

Louve-se, com fogos Caramuru nos céus, uma raridade: a reportagem "Boyhood Bolsa Família", material da “TV Folha” produzido graças à sabedoria do jornalista Fernando Canzian. Ao longo de dez anos, ele acompanhou a trajetória de duas famílias no Nordeste beneficiárias do principal programa social do país. Os leitores do impresso também tomaram conhecimento dessa bela narrativa.

O sooolll

Com a palavra, o compositor carioca Nelson Cavaquinho, o gênio da trilha cantada por Alcione: “O sol há de brilhar mais uma vez/ A luz há de chegar aos corações.”

E o que dizer do domínio absoluto do ator José de Abreu (Gibson) sobre o drama brasileiro, com aquela parada do distanciamento brechtiano — preguiça de explicar sobre a técnica, jovens ao Google. Abreu no auge interpretando o seu suposto contrário ideológico. Talvez interpretando a dor partidária que deveras sente. Nada nA Regra do Jogo é simplismo, simplório ou simplesmente ficcional. Que novela!

E já que citamos o doutor Gibson, minha nossa, o que diabos é esse espetáculo chamado Renata Sorrah? A Nora. Pqp, puta que pariu, educadamente, pqp, civilizadamente, perdão, pqp, carajo. Esta semana me perguntava aqui no sofá deslocado do friozinho de Gonçalves (MG), na Serra da Mantiqueira: como depois de tanto teledrama, décadas, esse Tony Ramos nos faz crer no bandido Zé Maria e em mais nada na vida?

Outra genialidade do Balzac das massas, digo, João Emanuel Carneiro: muita sabedoria passa pela loucura de Nelita, como um filtro para os(as) supostos(as) mentes sãs. Aí entra Bárbara Paz, talvez a maior atuação da novela até agora, que atriz.

Não vou entrar aqui no meu amado mundo Caruso/ai de mim Copacabana, tampouco subirei ao morro da Macaca numa só crônica, resumo a minha tese chinfrim à bandidagem profissa e amadora que fala mais sobre o Brasil do que o jornalismo empobrecido. O jornalismo que ditou a regra da bandidagem seletiva e esqueceu que o jogo é sempre mais rico.

O jornalismo que se rende a uma só narrativa, seja de uma turma de procuradores ou a um só juiz de Curitiba... E nunca foi buscar de fato o que há por trás desse personagem sem contradição alguma. Santos?

Nada se apura, só se publica. Só se sabe que ele, o juiz canonizado que virou boneco do carnaval de Olinda, salvou cabeças corruptas no rombo bilionário do escândalo do Banestado. Não acredito! Nada mais se ouviu ou foi perguntado. Se pelo menos fosse a narrativa do Dalton Trevisan, vampiro daquela mesma cidade... Se pelo menos fosse o João Emanuel Carneiro passando o Brasil a limpo, sem pena nem dó. Nada. O Brasil precisa entender que não há santo nA regra do jogo.

Xico Sá é escritor e jornalista, autor do romance “Big Jato (editora Companhia das Letras), entre outros livros.

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