_
_
_
_
_
Tribuna
São da responsabilidade do editor e transmitem a visão do diário sobre assuntos atuais – tanto nacionais como internacionais

Lugar é recurso

Degradação de centros ocupados por ambulantes inviabiliza que possam ser ofertados como moradia para o mesmo perfil social

Não há riqueza mais depreciada e recurso menos aproveitado no Brasil do que o lugar. Bons lugares são alicerces para pequenos e médios negócios, para o comércio de proximidade, para rede de oferta de serviços públicos, para o mercado imobiliário, para gerar empregos, para o desenvolvimento cultural, para o meio ambiente, para a qualidade de vida das pessoas.

Região do Saara, no centro do Rio.
Região do Saara, no centro do Rio.Fernando Frazão/Agência Brasil
Mais informações
O jogo do público e privado no passeio pelas galerias de São Paulo
O declínio do carro particular
As ruas mais perigosas do mundo
A América Latina sonha com uma vida sem carro

O lugar, como entidade, é um campo capaz de amalgamar e tornar coeso todos os diversos elementos que constituem os ambientes urbanos, com a sua devida diversidade social, como uma riqueza difícil de ser monopolizada, e que pode ser distribuída, acessada e compartilhada.

Entretanto, lugar é matéria pouco estudada por grande parte dos acadêmicos do urbanismo, obcecados estão com os fenômenos territoriais da luta de classes. O viés exclusivamente ideológico e doutrinário para buscar entender as políticas urbanas no Brasil não melhorará o desafio do espaço público, do desenho urbano e da forma (e da qualidade) das cidades. Só está acirrando a segregação e inviabilizando que bons (ou novos) lugares possam ser acessados.

O urbanismo analítico que tudo diagnostica, mas que não tem menor ideia do que propor para as cidades brasileiras —que mecanismos criar, que autoridade estabelecer, que gestão adotar, que desenho oferecer— acaba por relegá-las ao domínio exclusivo e eficiente do mercado, sempre demonizado, pouco compreendido, raramente regulado. É óbvio que necessitamos de Estado para o espaço público, não maior, mas melhor, ágil, inovador, capaz de formular e agenciar. Capaz de ter autoridade.

O tempo é a dimensão mais importante de ser planejada. É por isso que somos um país de política habitacional simplista que aumenta ainda mais a segregação territorial, inviabilizando a possibilidade de lugares democráticos, pois tratamos o desafio da produção da moradia como lente ideológica, criando como solução um produto, sendo, paradoxalmente, um bem privado, mas desprovido de qualquer valor coletivo, como mobilidade, acesso, diversidade, qualidade, espaço público. Desprovido de lugar.

Na história, enquanto empresa colonial o espaço público brasileiro foi ocupado e gerado pela presença dos escravos; eram eles que iam às ruas para conquistar pequenos trabalhos e entregar aos senhores o “ganho”; eram os chamados “tigres”, os escravos que carregavam os excrementos das casas senhoriais que iam `as ruas.

Dessa forma surgem os lugares no país, do gentio, do convívio entre populares, porém desprovido de sentido cívico amplo, afirmando-se como esfera coletiva apenas pelas práticas religiosas. Ou seja, surge bruto, caótico, mas alegre e festivo, sendo controlado pelo obscurantismo religioso.

É a modernidade urbana industrial que viria oferecer a redenção para o arranjo originalmente incômodo. Idealizou cidades concretistas, desterritorializadas, abstratas composições do engenho automotivo com paisagens expressas, viadutos, perimetrais, marginais. A esplanada é o lugar deste ideário, que ao negar a história, continha as mesmas partículas preconceituosas de eugenia que a Primeira República tentou aplicar. Um modo pueril de pensar as cidades que não conseguiu dar conta da saborosa mistura, calorosa e carnal de becos e vielas existentes.

Curiosamente, são nos lugares históricos que a luta pela democracia nos anos 80 ocupou: Sé, Candelária, Cinelândia, com seus mais de 400 anos eram mais pulsantes que as plácidas praças modernas para os comícios das Diretas Já. Eram lugar e eram recurso. Eram plenas de genius locci - o espírito do lugar.

Mesmo tão plenos de história e cultura ainda são vazios os centros urbanos brasileiros. E são também vazios de práticas, de metodologias, de gestão e de agenciamento para estes solos tão ricos em lugares. Que cidade aplica a utilização compulsória, o famoso “IPTU progressivo no tempo” por exemplo? São Paulo iniciou há pouco. Quem mais?

Não há conjunto expressivo de experiências sistematizadas ainda sobre os instrumentos criados no Estatuto da Cidades em 2001. São quase quinze anos de não adoção sistêmica de bons instrumentos, e tão pouco há pesquisas nas universidade sobre imóveis ociosos em áreas centrais, onde estão, em que estado, sua titularidade, seu preço, seu custo, e como convertê-los em moradia, e como fazê-lo de modo justo. Mas há muitos trabalhos sobre gentrificação, sobre remoção, sobre "cidade empresa" e mais ainda sobre os magníficos feitos históricos da modernidade arquitetônica e urbanística brasileira…

É nos buracos dessa modernidade naïf que irão surgir nossas hipocrisias, que ficam bem evidentes e tangíveis quando tratamos a respeito de ambulantes, por exemplo. Não resolveremos as desigualdades sociais ou amenizaremos a luta de classe enquanto admitirmos amplamente que produtos de origem industrial, de procedência regular ou não, possam ser distribuídos e negociados no espaço público sem qualquer tipo de formalização fiscal. Isso não é geração de empregos, é apenas desagregação do espaço público como valor compartilhado. E que retorna em prejuízo social irrestrito: a percepção de desordem e de degradação de centros urbanos ocupados por tal tipo de ambulantes inviabiliza que estes mesmos lugares possam vir a ofertar moradia acessível para o mesmo perfil social. Este é um principio que outras cidades latino-americanas buscam manter e controlar: a qualidade ambiental de suas áreas históricas.

A manutenção do espaço público como valor amplo e coletivo é que é mais capaz de gerar empregos e oportunidades florescendo como lugar comum, culturalmente especifico, mas democraticamente acessível.

Bons lugares necessitam de planejamento, mas podem vir a ser criados, mesmo que pontualmente, se houver foco nos elementos físicos essenciais que o constituem: a calçada, seu desenho e sua materialidade; o mobiliário urbano; a arborização; as fachadas permeáveis dos edifícios; as informações de orientação e a paisagem gráfica; o sistema viário mais humano. Resultados surgirão, mas valores imateriais destes lugares precisam ser também gerados, monitorados e mantidos: diversidade, confiança, segurança, vitalidade, ordenamento, clareza.

É fundamental que exista compromisso com a manutenção destes lugares, começando com a elaboração física mas principalmente cuidando da percepção pública que desenvolve-se ao longo do tempo, ao usar o espaço público. Precisamos urgentemente de novas instituições dentro das administrações municipais que sejam capazes de fazer este agenciamento sustentável do tempo do espaço público, fatigadas que estão as cidades de políticas e planejamentos hábeis em inventar teses mas incompetentes em criar e manter bons lugares para todos.

Washington Fajardo é arquiteto e urbanista, presidente do Instituto Rio Patrimônio da Humanidade e do Conselho Municipal de Proteção do Patrimônio Cultural. É  curador do Brasil na Bienal de Veneza 2016

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_