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Coluna
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Os náufragos que fogem do terror

Todo emigrante é um Ulisses sem barco e sem retorno, triste metáfora do Mediterrâneo

Refugiados sírios se aproximam de ilha grega.
Refugiados sírios se aproximam de ilha grega.Santi Palacios (AP)
Juan Arias

Uma das maiores tragédias de 2015 foi a desse milhão de pessoas: mulheres, crianças, idosos e até doentes que fugiram do horror das guerras para a Europa rica e pacífica. São os novos grandes excluídos da história moderna. Esquecê-los seria um crime que golpearia a todos.

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Entre esses excluídos, o senador Cristovam Buarque visitou há algumas semanas as fronteiras com a Síria para comprovar de perto o drama dos que fogem sem rumo do terror da guerra e da violência do fundamentalismo islâmico.

Seu livro Metáfora Mediterrânea, ainda inédito, é um soco nas nossas consciências de pessoas privilegiadas, que mesmo lutando contra uma grave crise econômica, temos a sorte de não sofrer os horrores e as consequências da guerra. Pedi ao autor que me deixasse antecipar algumas páginas do seu novo livro para este jornal, como reflexão sobre o ano que se foi.

O senador e escritor começa seu novo livro com uma história que o poeta cigano Alexandre Remenés lembrava ter ouvido de seu pai: “Um homem é muito mais feroz que um tigre. A um tigre, você oferece 15 quilos de carne e ele se acalma; a um homem, você cobre de ouro e ele ainda quer mais”.

Buarque escreve em seu novo livro, A Metáfora Mediterrânea:

“Depois de percorrer os 60 quilômetros entre Gazientep e Killis, no dia 05 de outubro de 2015 cheguei a uma das portas por onde os refugiados sírios deixam seu país devastado e entram na Turquia, no início da longa marcha de meses e até anos em caminhadas e frágeis barcos em que tentam atravessar o Mediterrâneo. A maior parte deles já são náufragos, mesmo que o destino final não termine em uma praia onde seu corpo seja depositado, como aconteceu com o menino Aylan Kurdi de três anos; cuja foto rodou o mundo no dia 3 de setembro de 2015.

Em Kills, a senhora, com feições não mais jovens nos seus prováveis 40 anos de idade, com seu traje árabe, me contou a história de centenas de milhares de outras mulheres como ela, impedidas de ficar no caos da Síria criado pela intervenção estrangeira na disputa entre o Governo e rebeldes. Saiu de Alepo, fugindo das bombas que vinham de cima e das facas que estavam ao lado.

Trouxe quatro filhos, entre os quais Ahmed, um jovem de vinte anos; não fala, não parecia ouvir, e apenas arrastava o torso pelo piso da sala do abrigo onde 20 pessoas de três famílias sobrevivem em um espaço de poucos metros quadrados. Um ano e meio depois de ter atravessado os 60 quilômetros entre Alepo, na Síria, e Killis, na Turquia, conta sua história através de um intérprete sírio que traduz para turco, que Mustafa Goktepe me traduz ao português. Descreveu a odisseia de sua viagem: empurrando o filho depositado em um carrinho de mão, com as filhas andando ao lado; às vezes, com sorte uma curta carona em automóvel por poucos quilômetros.

Não conseguia descer à calçada por causa da dificuldade de carregar Ahmed. Por meses estava limitada aos poucos metros quadrados da casa; as meninas adolescentes, com o recato de muçulmanas, as cabeças cobertas com véus, observam nossa conversa, olhando o irmão, sentado no chão com as pernas entrevadas dobradas, olhando um rádio de pilha que ele não sabe para que serve.

Uma triste característica da maior parte dos refugiados é que tinham patrimônio, não estão acostumados à pobreza. À pobreza do refúgio soma-se a sensação da perda de tudo, até mesmo da pátria. Esta outra travessia, de um dia alguém e no outro ninguém, assusta e horroriza ainda mais do que se tivessem sido pobres ao longo de toda a vida. É como se a desapropriação e o desenraizamento fossem piores do que a miséria permanente.

Em uma mesquita em Istambul, um sírio no início dos 40 anos me pediu esmola; conversando em um excelente inglês disse que era engenheiro. Graças à dignidade não perdida, todos olham nos olhos dos seus interlocutores, pelo menos ainda; o que não se vê sempre nos pedintes nacionais das grandes cidades do mundo.

Restam os apegos familiares, divididas pela morte em mãos rebeldes, em afogamentos no Mediterrâneo.

Aylan e seu irmão Galib, de 5 anos, morreram com sua mãe Rihan Kurdi na praia a caminho da Europa; mas dois milhões de outros sírios não conseguiram até hoje sair da Turquia. É como se uma marcha de milhares de quilômetros ficasse em poucos metros, cada refugiado carregando baús invisíveis onde levam o peso de tristes lembranças do passado e um destino assustado para o futuro. E nada mais. Um destino tão assustador quanto as ondas do mar-muralha do Mediterrâneo-da-exclusão em que transformaram o lindo mar-marinho do Mediterrâneo-das-lendas, dos mitos, da cultura e dos turistas. É como se cada migrante fosse um Ulisses sem barco e sem retorno, apenas um desejo de fugir de onde nasceu, com o sonho de um dia poder viver em paz e sem fome. Uma ilusão para a quase totalidade deles, barrados pelo preconceito e pelo egoísmo, depois de expulsos pelas bombas e o terror.

A porta na cerca da fronteira onde estive é apenas um ponto de partida entre muitos outros ao longo da fronteira turco-síria, e das muitas fronteiras entre países africanos até chegarem ao Marrocos, a Argélia, a Líbia, Tunísia e tantos outros países do lado de fora da Europa; ou de outras fronteiras como entre o México e os Estados Unidos da América. Dados da ONU estimam que 232 milhões de pessoas vivem como imigrantes em um país diferente daquele onde nasceu.

Apesar do número tão elevado, são uma pequena parte dos bilhões de seres humanos que tentam migrar todos os dias, a cada instante, da escassez ao acesso a bens e serviços da modernidade, da fome e pobreza para a riqueza e a abundância.

Tentam atravessar a cortina de ouro que separa os incluídos na riqueza, dos excluídos na pobreza. Mesmo que a maior parte deles não ouse sair da sua palhoça no campo ou sua barraca na periferia da cidade, ainda assim estão tentando atravessar fronteiras cada vez que lutam pela sobrevivência, tentando abocanhar uma parte da comida ou do consumo dos ricos”.

Buarque termina seu livro colocando os olhos na crise que atinge, hoje, o mundo no qual ou nos salvamos juntos ou autodestruiremos juntos:

“O mundo está triste com as ameaças ecológicas, as crises econômicas, as migrações em massa, a paz quente, as epidemias globais, o terrorismo, o fim da privacidade, a ampliação da desigualdade.

E sem uma utopia alternativa que fascine os excluídos e seduza aos incluídos na modernidade. Talvez este seja o maior dos afogamentos da metáfora mediterrânea: o afogamento político por falta da esperança, tão escassa na superfície quanto a falta de oxigênio que vitimou Aylan sob o mar e a milhões de outros sobre a superfície.

Estamos todos no mar e sem bússola sabendo que um enorme meteoro interno, fabricado por nós, o conhecimento-sem-ética-a-serviço-da-voracidade-do-consumo-e-da-ganância-do-capital explodindo, contra nós próprios.

O mundo injusto e excludente que inventamos e fizemos com nossa inteligência feroz e suicida, que o Mediterrâneo furioso e entristecido nos mostra, como se ele fosse apenas mais uma metáfora grega”.

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