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A interminável busca pelos restos do poeta espanhol Federico García Lorca

Uma equipe de arqueólogos e historiadores recomeça a procura do poeta na Andaluzia

Vídeo: LUIS ALMODÓVAR
Jesús Ruiz Mantilla

Ao chegar a esta paragem, é impossível não se lembrar do Poema de la Soleá: “Terra seca, terra quieta de noites imensas”. Se houve um gênio que soube tecer em vida um inquietante jogo de premonições, esse foi Federico García Lorca. Sob a terra seca onde hoje fica o Polígono número 9 de Alfacar, num terreno inscrito no 5º cartório imobiliário de Granada sob o número 1.833, livro 44, folha 97, em um descampado ermo onde mato, pedras e lixo se misturam, bem ali, num círculo de 160 metros quadrados, pode repousar o cadáver do poeta. É o que dizem Miguel Caballero e Javier Navarro, chefes de uma equipe de investigação que está prestes a iniciar uma nova fase de escavações em busca dos restos do autor de Poeta em Nova York, enterrado junto a outros perseguidos políticos executados na noite de 17 de agosto de 1936.

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À espera apenas de uma autorização legal do Governo regional da Andaluzia, outro esquadrão formado por historiadores, arqueólogos, geólogos e legistas procedentes de várias universidades da Espanha, Argentina e Reino Unido espera pacientemente a sua vez de escavar. Será a terceira tentativa.

A primeira, baseada na lendária investigação de Ian Gibson, ocorreu em 2009 e não gerou resultados no local exato, junto à oliveira que hoje dá acesso a um parque que homenageia o poeta. A segunda foi em 2014, a cargo da mesma equipe atual, que ficou a um palmo do local onde as novas escavações devem acontecer.

Vontade política

A culpa foi do frio. Chegou o inverno, e a pá escavadora necessária para fazer o rastreamento do terreno precisou ser usada para eliminar a neve das estradas. Parecia um filme de Berlanga… Ou um sintoma da falta de vontade política, que hoje parece estar passando das autoridades locais para as regionais, mais interessadas na busca. E de dinheiro, hoje garantido graças a doadores privados – anônimos alguns, outros com nome, sobrenome e endereço –, reunidos num crowdfunding que correu o mundo. Some-se a isso o montante não gasto da verba de 16.500 euros (71.200 reais) que o Governo da Andaluzia ofereceu em 2014.

Nesta nova tentativa, Miguel Caballero e o diretor da escavação, Javier Navarro Chueca, esperam acertar: “Se estiverem aí, os encontraremos”, afirma Navarro. “Avançamos no conhecimento do terreno, com um trabalho científico que foi descartando lugares”. Eles devem encontrar alterações que levem a poços artesianos usados como fossas mortuárias. Isso implica um movimento do terreno que foi, em princípio, detectado por georradares em três zonas diferentes, num espaço de 160 metros quadrados.

García Lorca com suas sobrinhas, em 1935.
García Lorca com suas sobrinhas, em 1935.ÁLBUM

Essas pesquisas e conclusões se baseiam em versões bastante diferentes das de Gibson. “Tomamos como referência o trabalho do pesquisador granadino Eduardo Molina Fajardo, publicado postumamente em 1983”, afirmam. Esse trabalho se intitula Os Últimos Dias de García Lorca e, por se tratar de um falangista [seguidor da facção que apoiava Francisco Franco na Guerra Civil Espanhola], dá importância aos depoimentos de pessoas relacionadas ao crime. Trata-se de uma obra que tenta desculpar os seus partidários, mas que guarda interessantes referências a dados e locais concretos, citadas por testemunhas diretamente envolvidas. “Ele edulcora um ou outro depoimento, como o do capitão Nestares, chefe militar da zona de Víznar naqueles meses e amigo de Molina Fajardo”, comenta Caballero.

O filho do capitão Nestares, Fernando, também militar reformado com patente de general, atesta agora a pertinência da nova investigação. Esse homem, amigo dos arquivos e da história, foi conduzido por alguns dos supostos autores do crime até o exato local dos fatos. “Eram três”, afirma o general Nestares no arquivo provincial de Granada. Ou seja, constituíam metade do esquadrão, segundo algumas fontes. Porque Caballero, em seu livro As 13 Últimas Horas na Vida de García Lorca, apontou pelo menos seis pessoas em suas investigações.

Mas o militar não foi com todos eles ao local. “Foram os guardas de assalto que me levaram ao local onde diziam que os mataram. Um deles se chamava Antonio Benavides, e era alguém muito fanfarrão. Não haviam voltado a se ver desde a noite em que os fuzilaram. Ficaram contando suas vidas. Foram os mesmos que os trouxeram de Granada”, afirma Nestares.

Segundo ele, chegaram ao local do crime dois caminhões vindos de pontos diferentes. “Um trazia García Lorca e os banderilleros anarquistas, Juan Arcoya Cabeças e Francisco Galadí. O outro transportava o senhor Dióscoro Galindo, professor republicano de Publiana, que também foi fuzilado. Trouxeram-no do seu povoado e sob o comando do Juan Luis Trescastros”.

Os demais membros do pelotão eram Mariano Ajenjo Moreno, Salvador Varo Leyva e os campeões de tiro Juan Jiménez Cascales e Fernando Correa Carrasco, armados com suas pistolas Astra modelo 902 calibre 7,65 mm e seus fuzis Mauser modelo 1893, todos eles cheios de munição. Uns eram recrutados por sua perícia nos disparos; outros, como Benavides, um tipo sangrento, um assassino natural, segundo Caballero, apareciam por vício.

Nestares, que naquela altura apresentava a patente de comandante –quando diz que o levaram ao local nos anos setenta–, conseguiu convencê-los pela confiança que mereciam graças a seu pai: “Foram com muito gosto. Não voltei mais a vê-los. Ninguém em Granada sabia quem eram alguns deles”, afirma. Segundo o general, não se gabavam do crime, apesar de várias versões os apresentarem fanfarronando pela cidade nas horas posteriores ao assassinato.

A tese de Gibson

A atual investigação difere da de Gibson. Ele se baseava nos testemunhos de Manuel Castilla Blanco, conhecido como “Manolillo, o Comunista”, supostamente o coveiro, que conduziu o pesquisador a outra paragem, a 400 metros da atual. Segundo Caballero, tal testemunho não era confiável já que, segundo comprovou, Manolillo chegou ao local em setembro e o assassinato ocorreu em agosto. “Naqueles tempos de escassez, qualquer um estava disposto a dar uma versão em troca de alguma coisa”, afirma Miguel Caballero.

Gibson, por sua vez, argumenta que não confia na data alegada por Caballero: “Levar um estrangeiro até ali naquela época era arriscado. Eu acredito que ele [Manolillo] esteve, sim, presente. Ele estava convencido em me dizer a verdade. Manuel Cuesta me confessou que, na época, o capitão Nestares, responsável pela região, o obrigara a assinar um documento jurando que não havia estado ali”.

O problema com a nova superfície de escavação, que já está delimitada com estacas, é que está coberta por cerca de oito metros de terra por causa da preparação para construir um campo de futebol, na ocasião. No mesmo lugar onde os investigadores acreditam estar a vala, funcionava um campo de treinamento para tropas de Franco. O local também serviu para a prática de motocross e quase foi usado para a construção de um complexo esportivo que seria cercado por chalés. Algo que, na época, Isabel García Lorca, irmã do poeta, empenhou-se em parar mediante uma carta enviada ao então prefeito da localidade, Juan Caballero Leyva, datada de 13 de outubro de 1998: “Distinto amigo. Chegaram aos meus ouvidos o plano da Prefeitura de Alfacar, que o senhor preside, de fazer um campo de futebol justamente onde caíram milhares de homens assassinados, muitos deles, suponho, correligionários seus, socialistas. Também está aí meu irmão, Federico García Lorca”.

É o que Isabel reconhece na mensagem. E não para suas pressões por aí. Envia o fax para o então presidente do Governo da Andaluzia, Manuel Chaves, e tudo para. “O dano principal já estava feito”, diz Caballero. “A terraplanagem, que fez com que o terreno principal fosse alterado com a adição de vários metros de terra por cima. Agora temos que procurar uma agulha em um palheiro. Se tudo tivesse ficado como estava originalmente, junto ao que chamam de ‘Caminho do Bispo’ e a 24 passos da sede da fazenda, conhecida como Pepino, já teríamos encontrado os restos”, explica.

Um misterioso doador anônimo

Entre os doadores que apoiam as escavações há um anônimo misterioso. “Ele nos deu o que falta após comprovar o que necessitamos. É quase a metade do necessário, que chega a 31.400 euros (135.000 reais)”, afirma Miguel Caballero. O Governo da Andaluzia contribuiu inicialmente com 16.500 euros (71.200 reais). A Delegação de Fomento, uma máquina escavadora e cercas. Tudo em apoio a um grupo composto pelo arqueólogo-chefe, Javier Navarro, com seis colegas subordinados, pesquisadores da Universidade de Nottingham, a geofísica Francisca García, dois geo-arqueólogos – José Luis Peña, da Universidade de Aragón, e María Marta Sanpietro, da Universidade Nacional de Tucumán, na Argentina – e dois pesquisadores documentais, entre os quais está Miguel Caballero.

O Governo precisava de uma associação que pudesse impulsionar a iniciativa. Navarro envolveu a sua Associação Regresso com Honra, criada a partir da recuperação de restos de 60.000 soldados espanhóis que morreram na guerra de Cuba. Ele também participou da escavações de valas comuns em Agüero e Romanilla de Medinaceli, e é especialista na busca de corpos enterrados sem sepultura.

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