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Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Apologia ao orgulho

A necessidade de apropriar-se do espaço que o corpo ocupa é o primeiro movimento no sentido de modificar a realidade à nossa volta

Quando orgulho significa soberba, ensina o catolicismo, configura-se como um dos sete pecados capitais. Mas quando orgulho é sinônimo de satisfação com o próprio valor, com a própria honra, trata-se de um dos sentimentos mais belos e construtivos que existem. Alguém pode perguntar se faz sentido falar sobre “amenidades” num momento como este, em que o país chafurda numa crise institucional poucas vezes vista –a corrupção na política, o descontrole na economia– e mergulha numa espiral de violência sem precedentes, e o mundo assiste impotente a chegada de milhares de refugiados na Europa, lutando contra a fome, a sede, a intolerância. Talvez até mesmo por isso, para tentar encontrar motivos para continuar na labuta, a resposta é sim, vale a pena falar de “amenidades” num momento como este.

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Estávamos sentados numa sala de espera no Centro de Formação Cultural da Cidade Tiradentes, bairro distante 30 quilômetros do centro de São Paulo, quando comentei, para fazer conversa, sobre o calor da tarde: “Está fazendo 35 graus e ainda nem chegou a primavera!” Uma jovem, mal saída da adolescência, suspirou, mirando o horizonte com seus óculos. C., que me acompanhava, perguntou: “O que você está olhando?” Ela respondeu, compenetrada: “Estou vendo a rede na varanda da minha casa”. “Sério?”, indaguei, curioso, “Onde?”. Ela então me levou à janela e apontou para um conjunto de habitações de paredes sem reboco no alto de uma colina: “Lá, segunda casa contando a partir do supermercado, vê?” Adivinhei algo balançando na sacada. Ela continuou: “Aquela mata do lado esquerdo do morro refresca os cômodos. Quando chegar, vou direto deitar na rede”. Percebendo meu interesse, continuou: “Aqui está sempre dois, três graus abaixo da temperatura do centro. Temos cavalhada, futebol de várzea, temos tudo aqui!” Ela falou com tanto orgulho que me comovi. Aquele canto do mundo é o seu paraíso.

Quando orgulho é sinônimo de satisfação com o próprio valor, com a própria honra, trata-se de um dos sentimentos mais belos e construtivos que existem

Recordei então do momento em que, criança em Cataguases, acompanhei minha família de mudança do cortiço em que morávamos na Vila Teresa para nossa casa própria num bairro de nome emblemático, Paraíso. Um pedreiro lambão e um servente preguiçoso ergueram as paredes dos quatro cômodos, mas a base da edificação e a laje foram executadas em regime de mutirão. Meu irmão, na época chefe da casa, já que meu pai, doente, não possuía rendimentos, convocou para o trabalho amigos e conhecidos da fábrica. Em troca, oferecíamos lanche e refresco, preparados por minha mãe. A nossa foi uma das primeiras residências do lugar. Não contávamos com redes de luz, água e esgoto e não havia calçamento na rua. A água vinha de um poço artesiano de 22 metros de fundura, retirada por meio de uma bomba manual; o esgoto decaía para uma fossa séptica; velas iluminavam nossas noites longas. Apesar das dificuldades, éramos felizes ali, mesmo quando, no verão, a rua transformava-se em um adverso caminho de barro.

“Aqui está sempre dois, três graus abaixo da temperatura do centro. Temos cavalhada, futebol de várzea, temos tudo aqui!” 

Minha mãe resumia nosso contentamento: “Uma casa só nossa, onde pregar um prego ele fica, para sempre!”, não se cansava de celebrar. Meu irmão e eu plantamos laranja, limão, mexerica, ameixa, mamão e abacate no quintal. Minha irmã talvez fosse a única a demonstrar contrariedade: sonhava com um príncipe encantado e, naquela lonjura, acreditava que dificilmente ele pudesse encontrá-la. Infelizmente, não durou muito nosso idílio. Em oito anos, meu irmão estava morto, minha irmã casada, e fomos obrigados a trocar nossa casa assentada em um amplo terreno por outra, exígua, espremida em um conjunto habitacional num bairro ainda mais distante, a Taquara Preta. Mas, enquanto vivemos no Paraíso, lutamos por melhorias: acompanhamos a chegada da iluminação elétrica e a implantação das redes de água e de esgoto –o calçamento chegou quando já havíamos deixado o lugar.

O sentimento que une a jovem adolescente moradora da Cidade Tiradentes, bairro do extremo da zona leste de São Paulo, em 2015, com minha mãe, vivendo num bairro da periferia de Cataguases, no começo dos anos 1970, é a noção de pertencer a um lugar. A necessidade de apropriar-se do espaço que o corpo ocupa é o primeiro movimento no sentido de modificar a realidade à nossa volta. Se temos raízes, podemos nos constituir cidadãos do mundo, porque sempre teremos um ponto onde nos apoiar. Sem esse ponto, entretanto, tudo se liquefaz.

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