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Assim é a América real

Como a pujança latina transforma a sociedade, a política e a cultura dos Estados Unidos

Marc Bassets
David McNew (Reuters)

1. A notícia da década

Chamemos de revolução latina. Ou virada hispânica. Ou sismo demográfico. Não existe um termo para designar esse fenômeno: a transformação dos Estados Unidos em um país em que os brancos de origem europeia deixarão de ser majoritários e a minoria de origem latino-americana mudará para sempre a sociedade, a cultura e a política. Paul Taylor, diretor da organização Pew Research Center, deu o título A Próxima América a seu livro sobre essa revolução. Já o livro do demógrafo William Frey se intitula A Explosão da Diversidade. A obra de Frey começa com uma data-chave e um dado: 2011, o ano em que, pela primeira vez na história, nasceram nos Estados Unidos mais crianças de minorias (hispânica, asiática, afroamericana) que brancos de origem europeia.

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Quando dentro de 50 ou 100 anos se escrever a história dos anos do presidente Barack Obama, os historiadores mencionarão a aprovação da reforma da saúde, que estendeu a cobertura a milhões de pessoas sem seguro médico. Explicarão que a maior economia do mundo saiu da maior recessão em décadas, mas a recuperação foi precária e deixou um país onde os ricos ficavam mais ricos e a classe média tinha dificuldade em prosperar. Analisarão o papel das políticas de Obama na instabilidade do Oriente Médio. E relatarão como o degelo com Cuba e o acordo nuclear com o Irã alteraram certos equilíbrios geopolíticos, na América Latina e no Oriente Médio, herdados da Guerra Fria. Se fosse esse o resumo, estaria esquecendo um fato crucial.

Porque uma das principais notícias dos últimos anos é a “explosão da diversidade” de que fala o demógrafo Frey. Nada continuará igual depois dessa transformação, que se acelerou e que obriga a revisar muitas ideias preconcebidas sobre os Estados Unidos. Em 1970 viviam no país 9,6 milhões de hispânicos. Em 1980, eram 15 milhões. Em 1990, 22. No ano 2000, 35. Em 2010, 50. Em 2014, 55, 17,4% da população norte-americana. Segundo as projeções, em 2060 será 119 milhões, 28,6% da população. Nessa altura, os brancos não hispânicos, o único grupo cultural ou étnico em retrocesso, representarão menos de 50% da população. Será a minoria mais numerosa, mas não será mais a maioria.

2. O laboratório de Langley Park

Os Estados Unidos de 2040 —quando, segundo as previsões, os brancos não hispânicos deixarão de ser maioria— são uma realidade nos estados mais populosos do país, Califórnia e Texas, e em cidades como Nova York e Miami. Langley Park, na periferia de Washington, é outro laboratório. Ali oito de cada dez residentes são hispânicos. A imigração é sobretudo centro-americana. O centro do bairro é o La Unión Mall, um centro comercial que abriga lojas e restaurantes latinos. “Advogado guatemalteco e salvadorenho”, anuncia um cartaz. “Akí express. Envios semanais. Guatemala e México”, diz outro. Na vitrine da padaria La Chapina está colada a foto imprecisa de um homem com o seguinte texto: “Ladrão: se o vir chame a polícia”.

No balcão da La Chapina, atrás da vitrine, há um computador, pastas e formulários. Dois homens estão sentados ali. São Héctor Agustín e Jorge Sactic, ambos guatemaltecos. Agustín, de 40 anos, é operário da construção. Em 20 de fevereiro de 2014 caiu de um telhado de 5 metros de altura em um edifício militar. Exige uma indenização, mas com seu inglês precário tem dificuldade de realizar os trâmites necessários. “Eu não sei muito escrever inglês nem ler”. Sactic o ajuda. Sactic, de 52 anos, chegou cruzando o rio Bravo (ou rio Grande, como é chamado nos Estados Unidos) pela fronteira de Matamoros e Brownsville em 1985. É o proprietário da La Chapina. E muito mais. Ajuda os recém-chegados, assessora os moradores e se envolve no ativismo comunitário. Os políticos pedem sua opinião. Chamam-no de “O Prefeito”.

“O que ajuda, primeiro, é aprender a língua. E um ofício”, diz Sactic. “Isto vai te dar alguma estabilidade econômica. Quando conseguir estas coisas, começa a ganhar mais”. O La Unión Mall, em Langley Park, é um bom lugar para entrever o futuro deste país: um máquina do tempo para entender para onde vai a maior potência mundial. A máquina do tempo funciona para o passado. A experiência dos guatemaltecos ou salvadorenhos que chegam a Langley Park desorientados, sem conhecer a língua e dispostos a trabalhar de sol a sol, parece com a dos irlandeses, italianos e judeus europeus que chegaram entre meados do século XIX e meados do XX. “Os que vieram mais velhos pensavam em retornar [a seu país]”, diz Sactic. O Prefeito fala dos centro-americanos mas poderia falar de centro-europeus de um século atrás. “Os que cresceram aqui muito dificilmente retornam”.

3. A revolução latina

Dos 55 milhões de latinos, 38 falam espanhol em casa. O uso do espanhol diminui com o passar das gerações. Falam o idioma em casa 95% dos latinos nascidos no exterior, mas só 60% dos nascidos nos Estados Unidos. Aspirantes à Casa Branca como o republicano Jeb Bush, casado com uma mulher nascida no México, usam o espanhol em seus comícios. Outros, como Julián Castro, secretário de Habitação, promessa do Partido Democrata e de ascendência mexicana, identificam-se como latinos mas não falam espanhol. “Em algumas parte do país [o espanhol] sobreviverá por algum tempo. Sem dúvida em Miami ou em Los Angeles ou em partes do Texas”, diz por telefone Frey, vinculado ao think tank Brookings Institution. “Meus avós falavam alemão entre si. Talvez fossem a terceira ou quarta geração [da família] nos Estados Unidos”.

Em 2004, o cientista político Samuel Huntington publicou Who We Are? (Quem Somos?). O livro foi um grito de alerta. Ele disse que os imigrantes latinos não estavam se adaptando à cultura dominante, como haviam feito as primeiras ondas de imigrantes, e não pareciam dispostos a desistir de sua língua e cultura. Isso representava um risco para a identidade norte-americana e da coesão nacional. “Sem um debate nacional e sem uma decisão consciente”, escreveu Huntington, “a América está se transformando em algo que poderia ser uma sociedade muito diferente do que tem sido”. “Uma América bifurcada em duas línguas e duas culturas”, acrescentava algumas páginas adiante, “será fundamentalmente diferente da América com uma língua e cultura nuclear anglo-protestante que existe há mais de três séculos.”

Ouvem-se ecos do apocalíptico Huntington no discurso contrário à imigração do aspirante republicano à Casa Branca Donald Trump. “Existe uma parte da população que tem medo dessa mudança”, diz Frey. “Querem acreditar que estamos de novo nos anos 1950, em que não tínhamos muita imigração e éramos uma potência industrial. Mas não é possível recriar isso”. Frey acredita que, com os hispânicos, repete-se o padrão de outras ondas de imigrantes. Também aos irlandeses ou italianos foram recebidos com suspeitas. Alguns também falavam outras línguas, como os ancestrais de Frey. Os Estados Unidos os transformaram. E eles transformaram os Estados Unidos. “Depois de uma geração ou duas”, diz, “passaram a fazer parte do país e ajudaram a construir o país e aquilo que acreditamos ser a América real”.

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