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A MEMÓRIA DO SABOR
Coluna
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O que faremos se o chef morrer?

O sistema que define o ritmo de trabalho das cozinhas é tão antigo e personalista que obriga a levantar muitas questões

Bruno Rouffaer
Bruno Rouffaer

O sistema define o ritmo de trabalho das cozinhas é tão antigo e personalista que obriga a levantar muitas perguntas. A figura do chef é onipresente: ele decide, articula, estrutura, controla e marca os ritmos de trabalho. Também se mostra para o cliente, representa o restaurante e concentra a imagem do negócio. Este foi o panorama apresentado por Bruno Rouffaer durante sua intervenção, na quarta-feira, na abertura do Qaray, o encontro de cozinha que acontece até o dia 11 nas instalações da Fundação Telefónica em Lima, no Peru. A descrição, que mostra com pouca margem de erro o que acontece do outro lado da porta da cozinha em boa parte dos restaurantes de alto nível, desembocou em duas perguntas que Rouffaer fez em sua apresentação: “O que faremos, então, se o chef morrer? Fecharemos o restaurante?”.

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As perguntas vêm acompanhadas por algumas considerações e uma séria chamada de atenção por parte deste ex-cozinheiro belga, hoje especialista em gestão de recursos humanos e dedicado, como consultor, ao desenvolvimento de ferramentas para estimular um novo tipo de liderança. Autor de No way. The big bad boss era is over [De jeito nenhum. A era do chefão cruel acabou, em tradução livre], um livro que analisa as falhas do sistema de liderança enquanto esboça novos sistemas, seu discurso levanta algumas questões mais que espinhosas.

A figura do chef é onipresente: ele decide, articula, estrutura, controla e marca os ritmos de trabalho

A primeira vem depois de mostrar um vídeo gravado na cozinha de Gordon Ramsey, o midiático e bem-sucedido chef britânico. Nele, vemos como humilha, denigre, insulta, intimida, menospreza e sacode um de seus ajudantes até chegar à beira da agressão. “Ninguém quer trabalhar assim; devemos mudar atitudes desse tipo”, disse Rouffaer antes de confessar: “Eu passei por isso e eu não quero que os jovens sofram com tais atitudes porque acabarão pensando que é algo normal e as aplicarão à geração que vem depois deles”.

Não é uma questão menor. A natureza da relação dos grandes chefs com seus empregados é uma velha história que entrou no debate público por conta de um projeto audiovisual rodado no restaurante Noma, no qual alguns cozinheiros mostraram uma face da relação de emprego e trabalho nas grandes cozinhas muito diferente do que é imaginado pelo grande público. O que se viu então mantinha uma estreita relação com os comentários de Rouffaer em Qaray e com o que foi mostrado na gravação feita na cozinha de Gordon Ramsey.

“Calamos sobre o que ocorre nas cozinhas, e o que acontece é que muitas delas são um espaço dominado pelo medo”

No entanto, Rouffaer foi mais longe. “Calamos sobre o que ocorre nas cozinhas, e o que acontece é que muitas delas são um espaço dominado pelo medo”, para falar em seguida de gritos, maus-tratos, humilhações e abusos de todo tipo, inclusive sexuais, e reclamar uma mudança radical: “Precisamos de chefs que mostrem respeito por aquilo que fazem e apresentem um novo cenário de liderança com base num modelo de respeito e aceitando que os pratos não são preparados por uma pessoa, mas por uma equipe”. Seu discurso falou de líderes que aplicam valores como responsabilidade, confiança, honestidade e compromisso.

Sua proposta se dirige principalmente às novas gerações, a partir do fato de que “mais de 50% da população mundial tem menos de 30 anos”.

Há alguns meses, as ideias de Bruno Rouffaer são aplicadas no Manqa, um projeto nascido a partir do Gustu, o restaurante-escola criado há dois anos em La Paz pela Fundação Melting Pot, que foi estendido num ritmo frenético a nove centros de formação profissional em El Alto, a cidade adjacente a La Paz. Depois destes, abriram mais um em Huarina, nas margens do Lago Titicaca, e outro em Patio Bonito, uma das áreas mais problemáticas de Bogotá, capital da Colômbia. Outro centro está muito próximo de abrir as portas em uma área deprimida do Bronx. “Não queremos nos limitar a capacitá-los na cozinha, mas fazê-los crescer como pessoas e criar líderes que encabecem a mudança."

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