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Objetivo do resgate: corrigir as fragilidades do Estado grego

A frouxidão fiscal, o clientelismo e a corrupção emperram a tentativa de superar a recessão

María Antonia Sánchez-Vallejo
Três aposentados esperam em frente à sede do Banco Nacional da Grécia no dia 9 de julho.
Três aposentados esperam em frente à sede do Banco Nacional da Grécia no dia 9 de julho.LOUISA GOULIAMAKI (AFP)

Diferentemente dos resgates anteriores, que enfatizavam os cortes, o terceiro programa de ajuda à Grécia, que será negociado por meio do Mecanismo Europeu de Estabilidade Financeira (Mede), é de índole reformista. Não se trata em absoluto de um capricho dos sócios da União Europeia (UE), mas de uma tentativa possivelmente definitiva de corrigir falhas estruturais do Estado grego (a frouxidão diante da corrupção, a dependência de mecanismos de controle e a fragilidade institucional), que, na opinião dos credores, emperram toda tentativa de tirar o país de cinco anos de recessão e de uma dívida equivalente a 175% do PIB. Essa fragilidade congênita do Estado não vem de hoje. É o resultado de um sistema político clientelista e de um estigma histórico, com os quatro séculos de dominação otomana. Vários especialistas investigam qual é a raiz dessa falta de funcionalidade e quais são as receitas para superá-la.

Os incêndios que neste fim de semana queimaram centenas de hectares em vários pontos da Grécia lembraram, pela intensidade de alguns focos, a pavorosa língua de fogo que em 2007 percorreu durante dez dias o Peloponeso, arrasou 180.000 hectares, causou a morte de 65 pessoas e, sobretudo, demonstrou a incapacidade do Estado em responder à emergência. Anos depois da catástrofe, centenas de desabrigados continuavam vivendo em barracões, à espera de uma solução administrativa para sua situação de penúria.

O exemplo dos incêndios não é a única mostra da falta de funcionalidade do Estado grego, mas um dos mais clamorosos: a imobilidade prática do Governo durante dias e a paralisação das autoridades até que a chegada de ajuda material da UE contribuiu para resolver a emergência. Se quiserem, é só um episódio —muito grave— em comparação com o catálogo de fragilidades da Grécia, um país com fortíssimo senso de nação —daí esse nacionalismo que percorre todo o espectro político— mas uma débil estrutura de Estado.

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Assuntos fundamentais, como a fraude fiscal inveterada e a corrupção —que corresponde a pelo menos 25% do PIB—, a falta de instituições fortes como contrapeso ao poder político ou a dependência das autoridades do Governo —quer dizer, do partido— no poder revelam uma fragilidade congênita, que o terceiro resgate pretende remediar com um pacote de reformas estruturais que vão da aposentadoria —um gargalo de décadas, pela existência de uma infinidade de órgãos arrecadadores e de aposentadorias antecipadas— ao Imposto sobre Valor Agregado e aos métodos estatísticos.

“Grande parte das exigências da troika enfoca diretamente o funcionamento do Estado, as bases fiscais, privatizações, a independência dos mecanismos de controle”, indica Dimitris Katsikas, diretor do Observatório da Crise do centro de estudos Eliamep. “A maior parte das medidas tem essa finalidade, fortalecer o Estado, mas essas carências não são o problema principal. O básico é a natureza clientelista do Estado, com uma rede de interesses políticos e pessoais na qual o principal objetivo não é servir o Estado, porque essa noção não existe, e sim aos amigos e aos eleitores”, acrescenta Katsikas. “Na Grécia não há interesse comum. Por isso a crise é tão profunda.”

O clientelismo, além disso, não apresenta nenhum valor agregado, salvo a garantia de alguns votos. “Apesar do enorme tamanho da Administração [200.000 funcionários menos desde 2010, mas ainda superam meio milhão], a contratação de amigos ou familiares não implica um aporte de conhecimento, e isso explica o déficit de profissionais bem formados em muitas áreas”, acrescenta Katsikas, que rejeita a definição de Estado falido para o país. “Isso é a Somália. A Grécia é um Estado disfuncional, com uma Justiça de má qualidade e indicadores de corrupção abaixo de alguns países africanos... mas não falido”.

Seria simples atribuir a responsabilidade aos partidos (a Nova Democracia, conservadora, e o Pasok, socialista) que patrimonizaram o poder desde a restauração da democracia, em 1974; é a teoria favorita do escritor Petros Márkaris: “O clientelismo e as duas dinastias que nos governaram, os Papandreu e os Karamanlís —com os Mitsotakis no meio—, foi o que arruinou a Grécia.” Entretanto, muitas dessas falhas estruturais têm origem remota, fundada, por exemplo, na resistência a pagar impostos durante o Império Otomano, quando a população do millet (província) grego se negava a entregar o jaratsi, o tributo, ao sultão. Ou a falta de um cadastro de propriedades, resultado de uma tardia e mal executada reforma agrária relativa a terras que pertenciam à Igreja, o vetor nacional durante quatro séculos de dominação otomana e uma das instituições mais favorecidas pela frouxidão fiscal do Estado. Quando a Grécia conquistou a independência, em 1830, não o fez como outros Estado-nações da época, mas como uma ideia nacional—e um tanto romântica, byroniana— apoiada em estruturas inspiradas no Ocidente europeu.

Sobre a resistência da sociedade comenta Nikiforos Diamandouros, que foi responsável pela Academia de Ciências Políticas grega e defensor do povo europeu: “A desconfiança dos cidadãos diante de um Estado que não corresponde a suas necessidades explica sua resistência, por exemplo, a pagar impostos. A relação antagônica dos cidadãos com o Estado é algo muito definidor, mas também uma condição estéril, com um custo muito alto”, diz. O acadêmico recorre à época otomana para explicar as peculiaridades do país. “A noção de Estado de direito é muito fraca. Existe, mas é contrariada frequentemente porque as regras são frágeis. O Estado atual é uma herança de um modelo estatal de sultanato, personalista, no sentido de que não existem instituições que delimitem esse poder”. Torna-se impossível não lembrar, por exemplo, do poder absoluto que o socialista Andreas Papandreu inaugurou em seu primeiro mandato, nos anos 80, e de toda a corrupção e ruína futura que foram engendradas na época.

Diamandouros argumenta que “as reformas da troika vão na direção correta, porque o Estado precisa modernizar-se”, mas outros são mais céticos. Haris Theocharis, porta-voz parlamentar da agremiação liberal To Potami, demitiu-se em 2014 da Secretaria-Geral da Fazenda do último Governo bipartidário, depois de apenas alguns meses no cargo. Numa entrevista concedida a este jornal em fevereiro, Theojaris negou, como haviam dito vários meios de comunicação, que tivesse jogado a toalha por ter recebido ameaças. Bater de frente com o status quo foi o que o fez renunciar tão rápido. “A elite, obviamente, não quer que nada mude, e, se a administração não funciona, ela cria raízes, comodamente”, afirmava Theocharis, para quem a base da corrupção é “a baixa qualidade dos serviços públicos, o que obriga que os cidadão pague duas vezes por eles”.

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