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‘Vá, Coloque um Vigia’, o livro inédito de Harper Lee

A publicação do original do qual saiu 'O Sol é para Todos' muda o olhar sobre o mundo

Capa do livro, na edição em inglês.
Capa do livro, na edição em inglês.AP Photo/Harper

O mundo de sonhos de Maycomb e seu herói Atticus Finch racharam. Esse universo de ideais pela igualdade e iniciação à vida retratado por Harper Lee em O Sol é para Todos, em 1960, mostrou sua verdadeira cara com a publicação de Vá, Coloque um Vigia (Go Set a Watchman, em inglês). Este é o título do romance original que a autora norte-americana escreveu em 1957, e seu editor reorientou, até chegar à única obra conhecida de Lee, transformada em clássico contemporâneo. O romance é lançado nesta semana em vários países e em sete idiomas, no acontecimento literário mais esperado dos últimos anos. No Brasil, a previsão de lançamento é para outubro deste ano, pela editora José Olympio. 

Aquele manuscrito original, aquele embrião criativo, chegou às livrarias dos EUA e do Reino Unido, com dois milhões de cópias, e chega nesta quarta-feira à Espanha e à América Latina. O EL PAÍS apresenta o primeiro capítulo (em espanhol, tradução de Belmonte Traductores e edição de Eugenia Horrillo Ledesma).

São 293 páginas que não apenas rompem um silêncio literário de 55 anos, mas também revelam uma Harper Lee mais realista, política, combativa, direta, contundente, feminista, ousada e arriscada na época em que quis estrear na literatura com 30 anos quando apresentou o livro para várias editoras. Por acaso um romance escrito por uma mulher branca e do sul com ideias tão claras sobre os direitos civis, a segregação racial, a justiça, a convivência e os direitos das mulheres nos Estados Unidos em pleno turbilhão de ideias e protestos sobre esses mesmos fatos, que o levariam a uma reinvenção, era demais para o país daquele momento?

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Go Set a Watchman é o fim da inocência e do idealismo. A constatação de que os heróis são filhos de mortais e não escapam dos vaivéns de suas sombras. Pode ser melhor ou pior, literariamente, em comparação com O Sol é para Todos, mas o que está claro é que se trata de uma defesa dos sonhos. Não faltaram as desilusões dos leitores ao verem o lado escuro de Atticus Finch, mas tampouco faltaram elogios pelo risco assumido por Harper Lee no que seria sua estreia. Dois livros sobre um mesmo tema, mas complementares e independentes.

Um olhar comparativo entre os dois romances permite apreciar alguns aspectos reveladores, tanto no tema quanto na estrutura que serve como um guia para entender melhor o universo humano e ideológico do condado de Maycomb. O que revela Go Set a Watchman?

1 - Escritora. Uma Harper Lee mais realista, combativa, política, progressista e feminista que a refletida em O Sol é para Todos.

2 - Temática. A temática é a mesma nos dois romances: a segregação racial e os direitos civis, mas o cenário político e social é diferente: Go Set a Watchman acontece nos Estados Unidos dos anos 50 alvoroçado com protestos e reivindicações enquanto o país tenta se reinventar; já O Sol é para Todos acontece nos anos 30 com os mesmos problemas e preocupações, no entanto mais incipientes.

3 - Estrutura. A estrutura narrativa é diferente: Go Set a Watchman tem sete partes com 19 capítulos, algumas são como peças independentes, e O Sol é para Todos estáconstruído com duas seções de 30 capítulos em um único fluxo narrativo interconectado.

Romance revela uma Harper Lee mais realista, política, combativa, direta, contundente e ousada

4 - Metamorfose. Go Set a Watchman permite ver a habilidade com que Harper Lee transforma seu texto original em um clássico. Como uma história ambientada na década de 50 é transportada para os anos trinta, o que significa que seus dois protagonistas no original são mais velhos: Jean Louise Finch, que tem o apelido de Scout quando é criança, tem 26 anos; e Atticus, seu pai, 70; e em O Sol é para Todos estão 20 anos mais jovem, o que permite ver o arco da vida e da evolução, para frente e para trás de sua psicologia, ideias e caráter.

5 - Herói. Atticus Finch, o homem viúvo, pai de dois filhos (Scout e Jem) e advogado que defende um homem negro acusado de estupro, que aparece nos anos trinta, em O Sol é para Todos, como um exemplo de ética, integridade moral, partidário da igualdade e dos direitos civis e pai exemplar, se revela vinte anos mais tarde, em Go Set a Watchman, como uma pessoa que vive uma espécie de retrocesso: é mais conservador, é racista, assiste a reuniões da Ku Klux Klan e se opõe às tentativas da Corte Suprema de impor a igualdade de direitos e educação.

6 - Voz. Go Set a Watchman é narrado na terceira pessoa com flashbacks emocionais a partir da perspectiva de uma mulher adulta dando origem a um mundo mais realista, onde o passado colide com o presente; e O Sol é para Todos é contado em primeira pessoa, na voz de uma menina que apresenta um mundo mais idealizado.

7 - Política. O romance original é mais duro, mais beligerante em suas ideias contra o racismo e a favor da igualdade de direitos; mais direto no discurso e arriscado e discursivo no desenvolvimento das ideias políticas e sociais; em O Sol é para Todos é tomado como exemplo o caso em que Atticus defende um homem negro e ensina seus filhos que é preciso entrar na pele do outro se quiser realmente conhecer a verdade.

8 - Edição. Go Set a Watchman talvez seja uma obra menos acabada em sua redação e estilo, mas com momentos literários muito emocionais; enquanto O Sol é para Todos é mais polido e mais fino em sua concepção, estrutura e voz do início ao fim.

9 - Olhar. Go Set a Watchman mostra a ousadia, coragem e liberdade de uma Harper Lee com 30 anos. Alguns exemplos de conexões e diferenças narrativas concretas entre os dois livros são os seguintes:

Go Set a Watchman é o fim da inocência e do idealismo

Em O Sol é para Todos, Atticus diz a sua filha: “Tudo que posso dizer é que quando você e Jem forem adultas, talvez se lembrem de tudo isso com alguma clemência e com a sensação de que não enganei vocês”. Em Go Set a Watchman, a ideia genuína, há um momento em que Scout se sente traída e diz a seu pai: “Você é um covarde, um esnobe e um tirano”.

Calpurnia, a mulher negra que ajudava na casa e cuidava das crianças em O Sol é para Todos é uma mulher séria, mas compreensiva que cuida e educa de tal maneira que as crianças sabem que seus limites para brincar chegam até onde alcança a voz dela. Em Go Set a Watchman, Calpurnia já é muito mais velha e quando Scout vai visitá-la detecta o olhar de uma mulher que sabe que não pode evitar pensar que a menina que ajudou a criar é branca, mesmo nos anos 50 quando os negros como ela são discriminados e seu pai participa de reuniões indesejáveis.

Tudo isso aumenta as polêmicas ao redor de sua autora e do romance. Primeiro porque muitos questionam a lucidez de Harper Lee e sua permissão para publicar o livro, ela vive em um lar para idosos em Monroville, sua cidade natal e inspiração para o condado de Maycomb; e, segundo, porque se em 3 de fevereiro, data do anúncio da descoberta desse livro inédito, foi afirmado que o manuscrito havia aparecido em setembro passado, já há três semanas foi dito que o manuscrito havia sido visto em um leilão em 2011. E agora muitos consideram desnecessário derrubar ídolos literários que inspiraram várias gerações.

No fim das contas, sobra o eco da frase que o tio diz para Scout: “A ilha de cada ser humano, Jean Louise, o sentinela de cada um, é sua consciência.”

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