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‘O Doutrinador’: a revolta contra a corrupção chega aos quadrinhos

O personagem, que mata corruptos, é um perfeito anti-herói do Brasil contemporâneo

Felipe Betim
'O Doutrinador'.
'O Doutrinador'.Luciano Cunha

Um dia, não se sabe a data ao certo, um velho soldado do Exército brasileiro decidiu deixar sua aposentadoria, após "quase 40 anos vivendo como um esboço, um rascunho", para uma nova missão, "a mãe de todas as batalhas". Seu uniforme, ao invés da farda verde camuflada, passou a ser uma grande máscara de oxigênio e um casaco com capuz para não ser reconhecido. Do Exército sobraram as botas de couro e os fuzis, dessa vez usados para travar uma guerra —sua guerra— dentro do Brasil contra um inimigo interno: a corrupção. A primeira vítima dessa aventura foi um pastor deputado, assassinado em um quarto de hotel; a segunda, um velho senador que descansava em uma praia do norte. Este justiceiro quer limpar o país de seus dirigentes corruptos e não há negociação ou propina que o detenham:

— E-Eu te pago para me soltar!! Quanto é??

— Não quero seu dinheiro, secretário. Quero que o senhor trabalhe! Só isso. Trens como currais humanos... Ônibus assassinos sem nenhuma fiscalização... Metrô superfaturado e superlotado... Barcas com problemas todos os dias...

— Eu vou mudar tudo!! Eu juro! Eu prometo!

— Não secretário... Eu acho que a mudança virá com seu sucessor... Ou irei atrás dele também.

Assim começa a saga em quadrinhos de O Doutrinador, o perfeito anti-herói do Brasil contemporâneo. Revoltado com o sistema e com sede de vingança, não mede esforços para eliminar, um a um, políticos, empresários da construção, dirigentes do futebol e líderes religiosos corruptos. A obra, com duas temporadas já publicadas no Facebook desde 2013, finalmente chega nesta terça-feira às livrarias pela editora Red Box.

Episódio de 'O Doutrinador'.
Episódio de 'O Doutrinador'.Luciano Cunha

Os primeiros traços de O Doutrinador surgiram em 2008 das mãos do designer carioca Luciano Cunha, de 42 anos, inspirado em seus ídolos Frank Miller (Batman) e Jack Kirby (X-Men, Capitão América, Hulk). O projeto ficou na gaveta até março de 2013, quando o autor decidiu abrir uma página no Facebook para publicar os quadrinhos, e explodiu em junho do mesmo ano, no contexto das manifestações que então ocorriam no Brasil.

Cunha acertou no timing: por coincidência, o personagem viajou a São Paulo no início dos protestos pela redução do preço da passagem de ônibus na capital; o autor então rapidamente desenhou e publicou um episódio em que, com sua máscara de oxigênio e capuz na cabeça, enfrentava a Polícia Militar que reprimia os manifestantes. A página no Facebook rapidamente chegou a 20.000 seguidores nessa época e até 2015 —outro ano de massivas manifestações populares contra a corrupção— chegou a 40.000. Isso porque O Doutrinador parece encarnar, ainda que de uma forma extrema, a indignação com o panorama político, o mau humor das pessoas e a revolta contra "tudo o que está aí".

Quarto episódio da primeira temporada de 'O Doutrinador'.
Quarto episódio da primeira temporada de 'O Doutrinador'.Luciano Cunha

O casamento perfeito entre contexto político real e ficção em quadrinhos não é exclusivo de sua obra. "As pessoas esquecem, mas o que é o Tarzan? É o colonizador branco na África! E o Capitão América? Quando foi criado, lutava contra o nazismo. Depois, passou a refletir o imperialismo americano", compara.

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O Doutrinador já rendeu alguns "mal-entendidos ideológicos" para Cunha, que se irrita de ter que explicar sobre a ideologia de seu personagem. "O viés que as pessoas tomam para ele é político, mas pro Batman, porque é o Batman, é o viés de entretenimento, de diversão. Em O Cavalheiro das Trevas, ele é um milionário que caça bandidos pobres... Usa todo o seu aparato, força e dinheiro para fazer justiça com as próprias mãos. Mas dizem: 'ah, isso é só quadrinho'. Porra, mas o meu também é só um quadrinho!", explica o autor. Muitos dizem que ele desenhou um personagem fascista; outros, de extrema esquerda ou libertário. Na verdade, sua intenção era criar um protagonista maluco, um vingador completamente desequilibrado. "Ele simplesmente caça e mata os políticos de todos os lados. É um lunático. Ao invés de olhar a questão partidária ou ideológica, as pessoas devem ver o lado psicológico dele: nada justifica o que ele faz".

O público de O Doutrinador não é composto pelos típicos aficionados por quadrinhos. É mais abrangente, explica ao autor, para quem o que atrai esse público é menos a arte e mais o sentimento de que "alguma justiça" —atenção às aspas— estava funcionando contra os corruptos.

Luciano Cunha, o criador de 'O Doutrinador'.
Luciano Cunha, o criador de 'O Doutrinador'.

Depois do sucesso no Facebook, a primeira temporada de O Doutrinador migrou para o site oficial do personagem na Internet. O sucesso da história animou Cunha a publicar a segunda temporada a partir de abril de 2014, intitulada "Dark Web". Dessa vez, contou com a ajuda do músico Marcelo Yuka (ex-baterista de O Rappa), que teve a ideia do roteiro. Além de publicar as duas temporadas pela Red Box, o autor filmou em março deste ano um piloto de série e sua produção está sendo negociada com um canal fechado.  

Cunha já idealizou uma terceira temporada, mas admite que "quer dar um tempo". Apesar de ter começado cedo no mundo dos quadrinhos —"com 16 anos estava com o Ziraldo fazendo a revista do Menino Maluquinho"—, sua arte ainda não lhe sustenta. Trabalha com ilustração em uma agência de publicidade e se dedica a seu personagem durante seu tempo livre. "Publicava três paginas por semana, as vezes até cinco. E me tornei pai agora, então é muito cansativo". Além da possível série de televisão, sua obra também está sendo transformada em um jogo de videogame e um RPG. "Tenho plena consciência de que, só com quadrinho, não dá. Mas ele virando outra mídia, posso me dedicar só a ele. É o sonho de qualquer quadrinista no mundo todo".

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