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O Uruguai é épico até na derrota

Arbitragem e a falta de ‘fair play’ ofuscam a vitória do Chile contra os atuais campeões

Trinta e dois anos depois de sua última vitória contra o Uruguai numa Copa América, o Chile passou às semifinais do torneio, na noite de quarta-feira, num duelo parelho, decidido não só pela superioridade futebolística chilena, mas também por uma molecagem de Gonzalo Jara contra o atacante Edinson Cavani, que terminou na expulsão do astro uruguaio – o zagueiro chileno colocou um dedo nas nádegas do adversário, que reagiu. A partida terminou sem dignidade, com os uruguaios tendo dois jogadores a menos em campo e sem seu treinador no banco. Reforçando o dramatismo, nos últimos cinco minutos o zagueiro Diego Godín jogou como centroavante para tentar forçar uma histórica disputa de pênaltis, que acabou não ocorrendo. O Chile, que jogava contra o maior campeão da Copa América e o maior demolidor de sonhos dos países-sedes, comemorou uma vitória imprescindível para a sua nova identidade futebolística.

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Com duas propostas de jogo teoricamente antagônicas, a seleção anfitriã e a Celeste disputaram uma partida muito equilibrada. O Uruguai surpreendeu no começo ao avançar o time, que pressionava a saída de bola chilena e conseguiu inclusive esfriar a gritaria inicial com dois contra-ataques precoces liderados por Diego Rolán, lembrando aos 45.000 espectadores do estádio Nacional que o Uruguai não vinha a passeio. O treinador Óscar Tabárez havia apostado no dinamismo de Carlos Sánchez como complemento para Álvaro González na criação, e essa escolha se mostrou acertada. Mas a Roja, com apenas uma novidade, Mena no lugar de Beausejour pela lateral esquerda, recorreu ao seu manual e foi pouco a pouco se apropriando da bola.

A torcida se entusiasmava sempre que Valdivia pegava a bola, na esperança de que saísse a jogada correta para desmontar o bloqueio charrua com um passe pelas costas. Com sua mobilidade habitual e as rupturas na segunda linha, Aránguiz, o Mago e Vidal eram os donos do jogo, embora sem criar perigo. O rei Arturo era o encarregado de marcar Godín nas cobranças de escanteios e laterais, pois essa era a maior preocupação do treinador do Chile, Jorge Sampaoli, que afinal veria recompensada a sua insistência no jogo aéreo durante os treinos desta semana.

Com paciência e com o apoio da arquibancada, o Chile cercou metodicamente o rival e reforçou seu predomínio da posse de bola após os 15 minutos. Sempre se apoiando em Valdivia, com um notável trabalho dos laterais no ataque, os locais voltaram a sentir falta do melhor Alexis para que uma fagulha de talento desequilibrasse um duelo tático e equilibrado. O Uruguai estava satisfeito mantendo o controle defensivo da partida, para eventualmente acionar Cavani e Rolán. Mordia cada bola, como era de se esperar. Mas os charruas foram se recolhendo com o passar dos minutos, resistindo ao assédio. O Estádio Nacional vivia o seu momento mais eufórico desta Copa América: “Vaaamos, vamos chileeeenos, que esta noite temos que ganhaaaaar”. Sampaoli caminhava sem parar por sua área técnica. Alexis teve uma chance desperdiçada aos 36 minutos, e Vidal disparou pela primeira vez a meia distância dois minutos depois. O clima dentro das áreas fervia a cada córner. O Chile era melhor, mas não o suficiente.

Com propostas de jogo teoricamente antagônicas, os dois times fizeram uma partida equilibrada

Nenhum chileno queria levar o jogo para os pênaltis, onde os uruguaios viveram alegres experiências nos últimos anos. Depois do intervalo, a partida continuou pelo mesmo caminho. Cavani se multiplicava na defesa, mas aos 17 minutos silenciou o estádio com um imponente chute de 35 metros, que passou como um raio por cima do travessão. Havia ações dos dois lados, mas de baixa intensidade. O Chile continuava com o seu 5-2-1-2 ao se defender, passando para um 3-4-1-2 na hora de atacar, com frequentes mudanças de posição e um Valdivia mais estático. Trabalhava de forma tranquila e persistente, mas continuava sem causar estragos: seus atacantes, permanentemente marcados, ficavam pouco à vontade quando recebia as bolas. O fantasma dos pênaltis já ia se formando na boca dos jornalistas.

Mas aí Cavani, o Matador, que já havia calado o estádio com sua bomba de direita, começou a aparecer mais e a dar instruções aos companheiros. De cabeça, fez um passe para Abel Hernández (substituto de Rolán), que poderia ter ficado sozinho na área se tivesse uma reação mais rápida. A Joia não apareceu, e a partida mudou definitivamente dois minutos depois, quando Cavani, já com um amarelo por reclamação, reagiu (sem muita violência) a uma provocação inaceitável do zagueiro Jara e foi sozinho para o vestiário – para a alegria da torcida chilena e desespero da uruguaia, que viu seu astro viver dois dias de pesadelo, desde a detenção do seu pai por se envolver em um acidente de trânsito com morte no Uruguai. O centroavante do PSG deixava a sua equipe com dez jogadores, apenas algumas horas depois de decidir não abandonar a Copa América devido ao problema familiar.

Não que a equipe de Tabárez tenha se desmanchado com a saída de Cavani. Quanto maior o desafio, maior a garra charrua. Um contexto perfeito para uma partida épica, devem ter pensado. Tabárez saía de vez em quando da área técnica, mas estava relativamente tranquilo. Um impressionante voleio de Carlos Sánchez quase emudeceu a capital chilena, mas passou perto da trave. A Roja insistia no seu jogo, cadenciando o ritmo e colocando mais jogadores afeitos ao toque (Matías Fernández no lugar de Díaz). “Cada dia te amo mais”, entoavam os chilenos, diante de um time que tocava de lado, rasa, sem pressa, sem verticalidade, enquanto Godín se multiplicava e demonstrava uma vez mais ser um dos melhores zagueiros do mundo.

Mas aos 36 minutos da etapa final uma intervenção apenas parcial de Muslera caiu nos pés de Valdivia, que teve o sangue frio de dar um passe adicional em vez de arrematar, e assim deixou Mauricio Isla sozinho. Isla fuzilou o arqueiro uruguaio na entrada da área. Era o peso da lógica, e o estádio vinha abaixo. O Chile estava nas semifinais, contra um rival teoricamente fraco (Bolívia ou Equador), e poderá finalmente mudar sua história. Pelo Twitter começavam a chegar imagens do dedo de Jara, mas ao público não estava nem aí – só os jornalistas reagiam indignados. Então, para liquidar da fatura, vieram o cartão vermelho para Fucile e a confusão que resultou inclusive na expulsão do professor Tabárez. Vendo-o deixar o campo claudicando, recordando que haviam chegado à Copa América sem o seu melhor jogador (Suárez) devido a uma sanção exagerada e que haviam sido dizimados por uma questão extrafutebolística, era impossível não lamentar a saída do Uruguai, dono de um futebol um tanto primitivo, porém épico.

A torcida chilena cantava e gritava olé nos últimos passes do seu time (Vidal perderia um gol feito), que bateu o recorde de posse do torneio, com 80%. A Roja está na semifinal depois de 16 anos, e sua melhor geração de jogadores de futebol acalenta um título sonhado há um século.

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