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Cristiano Araújo, o cantor que ninguém conhecia, exceto milhões

A morte do artista e de sua namorada comoveu o país e explica os circuitos de consumo

Felipe Betim
O cantor Cristiano Araújo.
O cantor Cristiano Araújo.Divulgação

A morte do cantor Cristiano Araújo, de 29 anos, e de sua namorada, a também artista Allana Coelho Pinto Moraes, de 19, em um acidente de carro na madrugada desta quarta-feira chocou milhões de pessoas no Brasil, mas também provocou uma reação contraditória nas redes sociais.

O cantor —um dos representantes do sertanejo universitário— voltava de um show em Itumbiara, a 200 quilômetros de Goiânia, a capital do estado de Goiás, no Centro-Oeste. Seu carro capotou na BR-153 por volta das três da manhã, entre as cidades de Goiatuba e Morrinhos. No início da manhã, as redes de televisão já relatavam o ocorrido enquanto centenas de fãs deixavam suas mensagens de solidariedade na página oficial de Araújo no Facebook (que tem 6,3 milhões de seguidores). "Já sentimos sua falta. Quem nunca viveu um momento no qual Cristiano Araújo não estivesse cantando?", escreveu um deles. No entanto, milhares de outras pessoas nem entendiam o que estava acontecendo. Muitos nunca tinham ouvido o cantor e nem sabiam o nome dele. "Quem é esse?", "Nem sabia que existia", era a reação nas redes. "Sei quem é porque o taxista me contou", confessava uma mulher.

O pop sertanejo causa furor no Brasil e é capaz de lotar festas e shows em todo o país, um pilar do negócio musical após a crise das gravadoras. O grande momento desse gênero no mundo foi o sucesso da canção "Ai se Eu te Pego", de Michel Teló. Seus artistas aparecem hoje nos primeiros lugares de todas as listas de canções mais tocadas nas rádios do Brasil e estão entre as mais baixadas da Internet. Na lista de álbuns com mais downloads no iTunes, cinco dos 15 são de música sertaneja.

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Mesmo assim, a morte de Araújo prova, mais uma vez, como no Brasil, um país de 200 milhões de pessoas, as desigualdades não só resistem, mas também se refletem na hora de consumir cultura, o que não se mede necessariamente pela validação de uma certa elite cultural.

Nascido no início do século XX, o sertanejo possui hoje ídolos nacionais unânimes —os irmãos Zezé Di Camargo e Luciano talvez sejam seus principais representantes— e é tão popular e tão brasileiro quanto o samba e a bossa nova. No entanto, para uma parte do Brasil —a que não conhecia Araújo até esta quarta-feira— a música brasileira ainda se resume a clássicos como Tom Jobim, Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. São cidadãos que vêm das classes médias tradicionais, dos grandes centros urbanos, como Rio de Janeiro e São Paulo, e que vivem dentro de uma bolha cultural. Ouvem rock e pop estrangeiro. Conhecem o pop sertanejo, já escutaram em festas, mas não está no seu dia a dia. Apenas "parece que já ouviram".

Para a indústria musical, este público conta cada vez menos. O sertanejo ampliou seu público desde os anos 90 e também na última década, com a nova classe média, um grupo heterogêneo de cerca de 40 milhões de pessoas que saiu da pobreza e também passou a consumir cultura.

Em uma entrevista para o jornal O Estado de São Paulo, o antropólogo Hermano Vianna, um dos principais pesquisadores da música no país, explicou que a ascensão das novas classes médias aconteceu ao mesmo tempo em que a cultura atravessava uma revolução digital. "Por exemplo, o mundo das gravadoras de discos, que comandava o mercado mundial de música popular, praticamente desmoronou. Milhares de pequenos estúdios surgiram em todas as periferias. Seus produtos são distribuídos via internet e fazem sucesso sem precisar de rádio, imprensa, TV", argumentou.

Além disso, segundo ele, as novas classes médias são um grupo "extremamente heterogêneo em termos de estilos de vida e visões de mundo". "Há de tudo nela: pastores de igrejas evangélicas, DJs de tecnobrega, militantes de coletivos periféricos, donos de lan houses, etc. (...) Quem não viaja pelo interior não deve se dar conta disso. Quando piso em qualquer biboca, longe das capitais, logo encontro grupos articuladíssimos, tocando projetos sociais e culturais muitas vezes com repercussão internacional", disse na mesma entrevista. "O pop periférico e a politização cultural periférica (que não mantêm relações harmoniosas entre si) são as principais novidades culturais brasileiras das duas últimas décadas".

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