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Coluna
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Quando o cafajeste vira um homem fofo

Acordei de sonhos intranquilos e me vi, naquela monstruosa ressaca, metamorfoseado no mais fiel dos bichos de toda a natureza

Quando acordei de sonhos intranquilos, me vi, naquela monstruosa ressaca, metamorfoseado no mais fiel dos bichos de toda a natureza. Um legítimo arganaz-do-campo, de nome científico Microtus ochogaster, um tipo de camundongo norte-americano que ostenta a fama do animal com maior índice de fidelidade do universo.

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Esse rato de pelo mais arrepiado, quase punk, sou eu. A neurociência do amor atribui o arrojo de tal roedor ao hormônio oxitocina. O meu caso é mais subjetivo, devo ao feitiço de uma moça que chegou na minha vida como quem pede um copo de d´água e me deixou na maior secura, mais sedento que retirante de quadro do Portinari.

Costumava ser um bom homem, fiel representante da fofolândia, apenas nas monstruosas ressacas ou sob efeito da culpa de um crime amoroso atrás do outro. Como é virtuoso o homem de ressaca! Na ressaca, o homem tem alma de gato; no restante da vida, o homem repete o cachorro.

O primeiro pensamento no homem de ressaca solteiro é casar-se, ter filho, uma vida regrada, amar a Deus sobre todas as coisas, cumprir os dez mandamentos...

Mas o que essa marvada tem de tão especial assim, meu velho, que foi capaz de mudar esta errante criatura?

Difícil responder, esse louco amor não se explica. É amarração superior, além muito além das interrogaçõezinhas da psicanálise selvagem de botequim. Difícil explicar, mas tentarei resumir, nestes humildes garranchos, onde é que o visgo da nega fisga o pobre pássaro.

Sem jogo dramático, naturalmente, ela sempre me deixa como se estivesse em um filme de Hitchcock. Completo suspense. Agora mudando de gênero, amor é sempre cinema: me deixa inseguro que só mocinha de faroeste.

E o ensaio de fio-terra da dominadora? Nunca pensei, meu Jesuscristinho! Pense, não julgue. Com mulher, e entre quatro paredes, tudo pode, não há machão que não dance, meu velho Norman Mailer, nesse insuspeito salão da sacanagem na idade da próstata. Talco no salão, diria, para lembrar o famoso forró de duplo sentido da genial cantora Cremilda.

Ela também domina a arte do bezerro e/ou garrote, como aprendi, nos verdes anos, o nome do que chamam agora pomposamente de pompoarismo. Sim, aquilo mesmo. A virtude máxima de nos prender lá dentro e nos levar ao Nirvana.

Juro que tentei dá umas dicas sobre essa metamorfose. Juro, porém não há explicação ou safadeza que dê conta do meu estado. Tem algo místico que me foge à compreensão, lógico. O bom e generoso sexo ajuda, contudo não decifra esse amor todo.

Óbvio que ela tem um olhar rapidamente vesgo, óbvio que ela é um tanto metafísica, óbvio que ela passou a vida na festa e hoje tem um quê de antissocial e melancólica, óbvio que ela tem o nariz grande, óbvio que ela tem em casa um velho vinil empoeirado do David Bowie...

E não mais tentarei explicar o inexplicável. Tudo que espalhei como bandeiras ou pistas não passam de especulações e espasmos de lirismo –assim diria meu amigo Roberto Batista.

Simplesmente do cafajeste se fez um arganaz-do-campo, com todo o requinte desse bicho que consegue ser mais fiel que vira-lata de morador do Largo do Glicério (SP). Mesmo ali sem a garantia da oferta de uma carne de terceira, rói o velho osso como se fosse um brinquedo ou uma ficção para aguentar a existência.

A queda pelos tolos

Como amante da crônica de costumes, recomendo um livrinho maravilhoso que encontrei outro dia em um sebo carioca: “Queda que as mulheres têm para os tolos” (ed. Itatiaia, Belo Horizonte), ensaio satírico de primeira qualidade. Originalmente publicado em francês por Victor Hénaux, suas ideias foram debatidas e combatidas na imprensa belga do final da década de 1850. Publicado em 1861 no Rio de Janeiro, em tradução do ainda menino Machado de Assis, aqui também provocou rebuliço –inclusive a confusão de se atribuir a obra ao tradutor até hoje.

Em um resumo grosseiro da tese da época, válida em algumas situações atuais, as mulheres preferem os tolos aos homens de espírito porque os tolos nunca atrapalham nem ofuscam. Os tolos as animam, diz o autor, numa felicidade besta ao ponto de requebrar com elas nos salões sociais e de compartilhar o banal da vida.

“Entregam-lhe assim os seus ouvidos, que é o caminho do seu coração, e um belo dia admiram-se de ter encontrado no amigo complacente um senhor imperioso!”, explica.

Vejo no perfil do tolo da versão machadiana uma mistura do fofo com o homem vacilão propriamente dito dos tempos de hoje. Na lábia e na estratégia do fofo a mulher ainda cai um pouco, tem seu encanto e às vezes um irresistível apelo de “homem sensível”. Recomendo a leitura.

Xico Sá, escritor e jornalista, é autor de “Modos de macho & modinhas de fêmea” (ed. Record), entre outros livros

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