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FIFA: ONG e ninho de ladrões

Jack Warner e Chuck Blazer, acusados e fabulosamente ricos, exemplificam o escândalo

Joseph Blatter, na sexta-feira no congresso da FIFA.
Joseph Blatter, na sexta-feira no congresso da FIFA.M. Hewitt

Jack Warner e Chuck Blazer: dois homens, um destino. Até pouco tempo atrás membros do todo-poderoso comitê executivo da FIFA. Ambos fabulosamente ricos. Os dois acusados de corrupção.

Jack e Chuck, como são conhecidos pelo recém reeleito presidente da FIFA Sepp Blatter, dominaram a CONCACAF durante 21 anos, a entidade regional da FIFA que compreende o Caribe, América Central e América do Norte. Entre 1990 e 2011 Jack, de Trinidad e Tobago, foi presidente da organização; Chuck, de Nova York, seu secretário-geral e homem de confiança. Hoje a justiça dos EUA, repentinamente a “polícia do mundo” no sentido mais literal da frase, persegue Jack para que responda às acusações de suborno e lavagem de dinheiro. Chuck, que já admitiu sua culpa, é hoje informante do FBI.

Uma olhada em como os dois acumularam suas fortunas oferece uma visão do modus operandi criminoso que se estende, ao que tudo indica, por um amplo setor de uma organização que é para o futebol o que o Vaticano é para a Igreja católica.

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Um dos que melhor conhecem a história é Andrew Jennings, autor escocês do livro Um Jogo Cada Vez Mais Sujo: O Padrão FIFA de Fazer Negócios e Manter Tudo em Silêncio. Jennings, que forneceu informação à justiça norte-americana para a investigação atual, escreve que Warner é "um ladrão de carreira” que “roubou dezenas de milhões de dólares”. “Blatter sempre soube”, segundo Jennings, “mas pagaria qualquer preço para que Warner lhe desse 35 votos cruciais nas eleições presidenciais”. Eram os 35 votos correspondentes aos países da CONCACAF, a maior parte de pequenas ilhas caribenhas.

Warner teve duas principais fontes de renda: dinheiro recebido da FIFA para o desenvolvimento do futebol de base que ele pegava para fins pessoais; subornos de países que precisavam de seus votos no comitê executivo, o que há de mais sagrado na FIFA, um grupo de indivíduos cujos votos decidem quais países têm o direito de sediar as Copas do Mundo de futebol.

O ‘modus operandi’ para acumular suas fortunas se estende à parte da entidade

Em 1996, por exemplo, Warner recebeu 3,5 milhões de dólares (11,13 milhões de reais) da FIFA para construir um “centro de excelência” esportivo em Trinidad. No ano seguinte conseguiu um empréstimo bancário garantido pela FIFA, mas que Warner nunca devolveu, de mais 6 milhões de dólares (19 milhões de reais). Os lotes nos quais foram construídos o centro de excelência e um hotel eram de Warner. Ainda que algumas crianças e jovens da ilha tenham se beneficiado do centro, o grande favorecido foi Warner que, graças à FIFA, se transformou em um magnata imobiliário.

Sobre as acusações de suborno, mais informações aparecerão, mas por enquanto o que se sabe, segundo depoimento no Parlamento britânico, é que Warner solicitou aos ingleses 2,5 milhões de libras (12,14 milhões de reais) para sua conta pessoal, nunca pagos, para construir “um centro de educação” em Trinidad. Em troca teria garantido seu voto para a Inglaterra como sede da Copa do Mundo de 2018. Por outro lado, Jennings conta em seu livro que a federação de futebol australiana, que queria a Copa de 2022, cometeu o erro de dar-lhe um cheque de 462.000 dólares (1,47 milhão de reais) para seu centro de excelência, acreditando pertencer não a Warner, mas à CONCACAF. Na mesma época, antes da FIFA votar para decidir as sedes das Copas, Warner visitou o presidente Vladimir Putin na Rússia, o país que ganhou o direito de sediar a Copa de 2018, e forjou uma estreita relação com Mohamed bin Hammam, que liderou a bem-sucedida campanha do Catar para a Copa de 2022.

Resta esperar que a investigação chegue à África, onde Blatter tem muito apoio

Chuck Blazer, que acompanhou Warner em sua visita a Putin, foi não só secretário-geral, mas tesoureiro da CONCACAF. Blazer, um senhor obeso de 70 anos que possuía um blog no qual escrevia sobre seus restaurantes favoritos, ganhou seu dinheiro através de comissões pagas por patrocinadores e a venda de direitos de televisão. Engordou ainda mais suas contas bancárias com a venda de entradas para as Copas. Segundo Jennings, Blazer desviou pelo menos 20 milhões de dólares (63,62 milhões de reais) para contas nas Ilhas Cayman e Bahamas. Excêntrico e ostentoso, comprou dois apartamentos de luxo em Manhattan, um deles para seus gatos, segundo a imprensa nova-iorquina. Nunca pagou impostos e foi assim que, como Al Capone, a justiça norte-americana conseguiu pegá-lo. Em 2011 um agente da Fazenda iniciou um processo contra Blazer, comparou notas com o FBI, Blazer confessou e depois delatou seus pares. Assim começou a investigação que levou à acusação de sete membros da FIFA pela Promotoria Geral dos EUA —ou no caso de Warner, ex-membro. Foi obrigado a pedir demissão em 2011 após revelações de corrupção na imprensa, mas não sem antes Blatter lhe agradecer publicamente pelos seus serviços ao futebol.

Blazer teria desviado aproximadamente 63 milhões de reais às Bahamas e Ilhas Cayman

Até o momento os acusados, cujos supostos crimes seguem o padrão dos de Warner e Blazer, são apenas do continente americano. Mas a promotoria norte-americana alertou que logo outros cairão. Resta esperar que as investigações se estendam a algumas federações de futebol africanas, que em sua maioria votaram fielmente em Blatter na eleição presidencial de sexta-feira. Blatter tem muito apoio na África. Sob seu mandato ocorreu a primeira Copa do Mundo na África em 2010 com um bilhão de dólares (3,18 bilhões de reais) investido para o desenvolvimento. O que ainda precisa ser averiguado é quantas das 133 pessoas da África e do resto do mundo que deram seus votos a Blatter na sexta imitaram o exemplo de Warner e ficaram com uma porcentagem do dinheiro em seus próprios bolsos.

A suspeita de que Warner e seu comparsa Blazer não são a exceção, mas a regra na FIFA, apoia-se em dados da respeitada organização anticorrupção Transparência Internacional. Um mapa do mundo publicado pela Transparência Internacional pinta os países nos quais a corrupção é endêmica de cor vermelha. A grande maioria dos votos que acabam de dar a Blatter a presidência da FIFA pela quinta vez vêm dos países em vermelho.

Os dados oficiais da FIFA também são eloquentes. Revelam que entre 2011 e 2014 a organização investiu 454 milhões de dólares (1,44 bilhão de reais) em programas de desenvolvimento e gastou mais do que o dobro, 995 milhões de dólares (3,16 bilhões de reais), para alimentar sua máquina através de salários, pensões e pagamento variados às federações dos países membros. “A família FIFA”, como Blatter a chama, sabe se cuidar. Grande parte desses 995 milhões de dólares contribuem para que os chefes das federações associadas recebam suculentos salários, voem sempre de primeira classe, hospedem-se em hotéis cinco estrelas e recebam diárias que variam de 200 a 500 dólares (636 a 1.590 reais). Segundo um ex-funcionário da FIFA entrevistado na semana da eleição, Blatter, que costuma viajar em jatos privados, recebe salário de dois milhões de dólares (6,36 milhões de reais) mensais.

Warner declarou que Mandela e Gandhi também foram presos

Poucos presidentes de multinacionais recebem tanto, mas Blatter sustenta que ele é presidente de uma ONG. Disse isso um ano atrás em uma frase que definiu sua visão do papel filantrópico do maior órgão do futebol mundial.

“Como ONG e de acordo com sua missão de desenvolver o esporte, deslumbrar as pessoas com torneios emocionantes e construir um futuro melhor através do futebol”, declarou Blatter, “a FIFA reparte a maior parte possível de sua renda com a comunidade global do futebol”.

Como revela sua insistência em continuar dirigindo a FIFA apesar do escândalo planetário que estourou na última semana de maio, Blatter está no comando do fenômeno esportivo que mais paixão desperta em todo o mundo, mas vive dentro de uma bolha. Ele e todos os que nele votaram. Um de seus devotos, o presidente da federação de futebol da República Dominicana, o comparou a Moisés, Abraham Lincoln e Winston Churchill durante um congresso da CONCACAF em abril. Jack Warner foi mais longe dois dias atrás. Atento à ordem de busca e captura do FBI, Warner declarou que Mandela e Gandhi também foram presos.

O FBI desafia o poder da FIFA

Na quarta-feira, pela primeira vez na história, a FIFA se viu encurralada pela justiça dois dias antes das eleições presidenciais. Uma longa e minuciosa investigação do FBI causou a detenção de sete membros do órgão que comanda o futebol mundial e a acusação de outros sete por corrupção e lavagem de dinheiro. Entre os presos em Zurique estão funcionários de alto escalão como Jeffrey Webb (Ilhas Cayman), vice-presidente da FIFA e presidente da CONCACAF e José Maria Marín, ex-presidente da Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e membro do comitê organizador do futebol nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016.

A acusação, liderada pela promotora geral dos Estados Unidos Loretta Lynch, afirma que a corrupção da FIFA "é crescente e sistêmica". Paralelamente, outro processo aberto na Suíça investiga se houve compra de votos na nomeação da Rússia como sede da Copa de 2018 e o Catar, de 2022.

A intervenção norte-americana provocou também um clima de tensão geopolítica. O presidente russo Vladimir Putin, que viu a Copa que organiza entrar em perigo, afirmou que os Estados Unidos excederam suas responsabilidades.

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