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Ninguém conhece Satoshi Nakamoto

Identidade do fundador do Bitcoin, desaparecido em 2011, é o grande enigma da era digital

Daniel Verdú

Um dos maiores enigmas da era digital é uma sombra com um nome japonês. Pode ser um só homem, uma organização, um governo ou a própria NSA. Ninguém sabe. Sob o nome de Satoshi Nakamoto se esconde o inventor do Bitcoin, uma criptomoeda que se propôs a revolucionar os sistemas de pagamento na Internet e cujo valor total de mercado hoje é estimado em cerca de 4 bilhões de dólares (12,7 bilhões de reais). Mas ninguém jamais viu o rosto de seu criador nem ouviu sua voz. Em 2011, quando seu invento começava a ser grande e ele poderia ter se tornado milionário, desapareceu. Deixou de responder até os e-mails de seu colaborador mais próximo, Gavin Andressen. Simplesmente disse que iria dedicar-se a outras coisas. O tipo de mensagem que teria escrito alguém que acabasse de fracassar. Não o inventor de algo como o Napster do dinheiro.

Nem sequer se sabe se é uma só pessoa, uma organização, um Governo ou a própria NSA

No final de 2008, Satoshi Nakamoto publicou um artigo de pesquisa onde explicava os fundamentos do Bitcoin, uma nova moeda digital baseada em um software de código aberto e na tecnologia P2P. No documento incluía um endereço de e-mail através do qual trocou mensagens durante dois anos e meio com a comunidade que o ajudou a desenvolvê-lo. O sistema pretendia eliminar os bancos da equação econômica, suprimir comissões, preservar a privacidade nas transações, facilitar os micropagamentos entre pessoas... Nascia em plena crise e possuía todos os elementos relativos ao sinal dos tempos.

Hoje são emitidos 25 bitcoins a cada 10 minutos, e só na Espanha são realizadas 100.000 transações diárias

Hoje, sete anos depois, 25 bitcoins são emitidos a cada 10 minutos no mundo e só na Espanha se realizam 100.000 transações diárias. Muitas empresas começam a aceitá-lo como meio de pagamento (Microsoft, Dell, Destinia…), o Federal Reserve (dos Estados Unidos) estuda incorporá-lo ao sistema e grande parte dos investimentos do Vale do Silício flui para revolucionárias empresas do entorno dessa criptomoeda (230 milhões de dólares somente em 2015). Na Espanha é usada por escritórios de advocacia como o Abanlex. E empresas como a Coinffeine atraem a atenção de todo o mundo por sua guinada à descentralização do Bitcoin mediante a eliminação das casas de câmbio da jogada.

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A partir de então, a caça a Satoshi Nakamoto (nome que poderia ser um simples pseudônimo) se transformou em um desafio para jornalistas, especialistas em informática e criptógrafos. The New Yorker e o New York Times apontaram seus candidatos sem obter confirmação de nenhum deles. Mas o caso de maior repercussão ocorreu em março de 2014, quando a Newsweek retomou sua edição impressa com uma bomba na capa: tinham descoberto. A jornalista Leah McGrath Goodman garantia ter localizado um cara comum chamado Dorian Satoshi Nakamoto que vivia humildemente em um subúrbio de Los Angeles. Um físico de origem japonesa cuja biografia guardava coincidências demais com os dados conhecidos do fundador do Bitcoin. Falava um inglês um tanto ruim, havia trabalhado para assuntos secretos do Governo, as pessoas em seu entorno sustentavam que podia ser ele... Segundo a jornalista, na entrada de sua casa ele chegou até mesmo a lhe dizer: “Já não estou envolvido nisso, não posso falar sobre isso. Outras pessoas estão agora encarregadas”. Não dava margem a muitas dúvidas.

No dia seguinte à publicação, porém, o suposto Satoshi desmentiu tudo. Até mesmo garantiu que seis meses antes desconhecia o Bitcoin. O mais doloroso para a jornalista foi que a maioria dos especialistas consultados respaldaram a versão dele. Depois de um ano de silêncio, McGrath atendeu a este jornal, durante dez minutos, mas quis limitar sua declaração oficial a que tanto ela como a Newsweek continuam endossando e dando crédito a seu artigo, ainda postado em sua página na Internet sob uma petição de retificação do advogado do Nakamoto, que negava ser ele. Alguns acreditam que Leah McGrath continua mantendo sua versão porque deve saber algo mais do que publicou.

Dorian Satoshi Nakamoto quando apareceu para desmentir que fosse o criador do Bitcoin, como apontara a 'Newsweek'.
Dorian Satoshi Nakamoto quando apareceu para desmentir que fosse o criador do Bitcoin, como apontara a 'Newsweek'.

O Bitcoin é a cristalização de um velho desejo perseguido pelo movimento cypherpunk desde os anos 80 que encontrou a solução no protocolo de Nakamoto. Há uns 14 milhões em circulação – cada um vale hoje uns 220 euros (cerca de 750 reais) – e, pelo modo como o sistema está configurado, permitirá que se reproduzam até 21 milhões (o processo terminaria ao redor do ano 2140). Sua estrutura está baseada na chamada cadeia de blocos, algo assim como as folhas de contabilidade onde são anotadas todas as transações realizadas. Esses blocos são gerados mediante um complexo cálculo que só computadores potentes podem processar (às vezes, centenas deles). Esse trabalho é realizado pelos chamados mineradores, que são recompensados com 25 bitcoins cada vez que obtêm um novo bloco. Um incentivo que começou com 50, mas que cai para a metade à medida que aumenta a complexidade do problema matemático. Logo, seu valor flutua no mercado em função da oferta e da procura, e o preço fixado pelas casas de câmbio.

'Newsweek' afirmou em sua capa ter descoberto o autêntico Satoshi. No dia seguinte, o homem desmentiu

Satoshi Nakamoto foi o primeiro a extrair Bitcoins e poderia ter em sua conta, segundo os cálculos que podem ser feitos consultando a cadeia de blocos, ao redor de um milhão deles. Mas desde que desapareceu em 2011 não movimentou nem um cêntimo. Algo que despertou todo tipo de teoria: desde que perdeu as chaves de sua conta até que os abandonou para não dar pistas de sua identidade. O que está claro é que se trata de alguém que não precisa deles. Além disso, há alguns rastros, extraídos de todos os seus e-mails que vieram a público, que permitem ao menos eliminar alguns suspeitos.

Capa do livro de Nathaniel Popper sobre a história do Bitcoin.
Capa do livro de Nathaniel Popper sobre a história do Bitcoin.

Essa é a única maneira de se aproximar do enigma. Nathaniel Popper, jornalista do New York Times e autor do livro Digital Gold, opina que o contexto histórico é muito importante para definir sua identidade. É preciso entender os experimentos prévios feitos na mesma linha (como o Hashcash ou o B-Money) e que Satoshi provavelmente surgiu desse entorno. Justamente, outro desses antecedentes foi o Bit Gold, uma espécie de versão beta do Bitcoin não desenvolvida. Seu criador, um experimentado criptógrafo chamado Nick Szabo, é quem Nathaniel apontaria se tivesse de apostar em um nome real do verdadeiro Satoshi. “Minha aposta é que esteve envolvido, mas que teve ajuda para desenvolver o código. Ele não era o tipo de programador que poderia fazer esse software sozinho. Há pessoas que o ajudam. Não digo que seja ele, mas que todas as evidências obtidas até a data apontam para ele”, pondera com toda a cautela do mundo. Szabo, como todos os demais anteriormente, nega.

Capa da versão em espanhol da história em quadrinhos 'A Caçada a Satoshi Nakamoto'.
Capa da versão em espanhol da história em quadrinhos 'A Caçada a Satoshi Nakamoto'.

Para as pessoas mais próximas do Bitcoin, tanto por seu uso como pela militância ideológica, desvendar quem é Satoshi é irrelevante. Assim opina Alex Preukschat, autor da história em quadrinhos Bitcoin – The Hunt for Satoshi Nakamoto (Bitcoin – A Caçada a Satoshi Nakamoto). Para ele, o importante é que se trata de um projeto descentralizado p2p cuja estrutura pode ser aplicada a outros campos da vida. “O relevante é a comunidade de pessoas envolvidas. Isso se aplica também à democracia, que só pode ser igualmente boa como a qualidade das pessoas que a compõem. Nos projetos p2p isso se passa de uma forma mais pronunciada: todos os seus membros constituem a força. Para mim, o mais bonito não é o dinheiro ou a tecnologia, mas as novas estruturas descentralizadas que oferece para a sociedade. Trata-se de uma maneira de organizar e incentivar no futuro comportamentos humanos. Algo assim Satoshi devia pensar quando partiu para fazer outras coisas e renunciou a seu invento, e ao milhão de bitcoins de sua conta.

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