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Obituário

Inês Etienne Romeu, única sobrevivente da Casa da Morte

Companheira de guerrilha de Dilma Rousseff, ela passou por torturas durante a ditadura

Raquel Seco
Inês Etienne, entre Rousseff e Lula durante a entrega do prêmio dos Direitos Humanos de 2009.
Inês Etienne, entre Rousseff e Lula durante a entrega do prêmio dos Direitos Humanos de 2009. Globo / Getty

Inês Etienne Romeu morreu na segunda-feira aos 72 anos em sua casa em Niterói, na região metropolitana do Rio de Janeiro. A ex-guerrilheira foi a única sobrevivente de um dos principais centros de tortura da ditadura brasileira (1964-1985).

Nascida em 1942 em Pouso Alegre, Minas Gerais, Inês Etienne integrou a Vanguarda Armada Revolucionária Palmares, organização de extrema esquerda que sequestrou o embaixador suíço no Rio de Janeiro, da qual também fez parte a presidenta Dilma Rousseff. A militante foi detida em maio de 1971 em São Paulo e trasladada para a conhecida Casa da Morte de Petrópolis, município perto do Rio de Janeiro, não sem resistência de sua parte: chegou a se jogar diante de um ônibus quando a transferiam de uma cidade para outra.

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Quem entrava na casa de Petrópolis não saía vivo. “Claro que dávamos sustos, e o susto sempre era a morte. A casa era para isso”, reconheceu o tenente-coronel Paulo Malhães diante da Comissão da Verdade, que investigou os crimes da ditadura. Ali perdeu a vida uma vintena de pessoas. Somente Inês Etienne sobreviveu. Mas os 96 dias de torturas, estupros e humilhações a marcaram para sempre. “Estava destroçada, doente, reduzida a um verme, obedecia como uma autômata”, contou depois. Durante o sequestro, tentou suicidar-se outras duas vezes. Conseguiu sair ao fingir que aceitava tornar-se informante de seus captores.

Em novembro de 1971, a justiça oficializou sua detenção e a condenou à prisão perpétua. Foi a última presa política do regime militar a ser libertada, com a lei da anistia de 1979.

As anotações que Inês Etienne fez ao sair da Casa da Morte, ainda em plena ditadura, ajudaram a identificar nove militantes esquerdistas assassinados no mesmo local. A ex-guerrilheira fez um registro detalhadíssimo e apresentou os relatos à Ordem dos Advogados do Brasil em 1979. Sabia até o número do telefone da casa para onde a levaram “com os olhos vendados” porque escutou quando um dos torturadores respondeu a um telefonema. Identificou um médico que ajudava os torturadores, Amílcar Lobo, e o proprietário da casa: “Visitava o lugar e mantinha relações cordiais com seus ocupantes. É estrangeiro, provavelmente alemão. Tem um cão dinamarquês cujo nome é Kill. Embora não participe pessoalmente das atividades e atrocidades cometidas ali, tem pleno conhecimento delas”.

Em 2003, aos 61 anos, Inês Etienne sofreu um misterioso percalço. Um marceneiro foi até a sua casa realizar um serviço. Uma faxineira a descobriu no dia seguinte no chão, ferida na cabeça. A polícia qualificou o caso como acidente doméstico, mas um relatório médico garantia que havia “sinais de traumatismo craniano devido a múltiplos golpes”. O suspeito nunca foi identificado e depois disso ela teve dificuldades para falar e se movimentar.

Em 2009 recebeu o prêmio dos Direitos Humanos do Brasil na categoria de Direito à Memória e à Verdade. O então presidente, Luiz Inácio Lula da Silva, lhe disse: “Minha querida Inês, só queria lhe dizer uma coisa: valeu a pena cada gesto que fizeram, cada choque que vocês tomaram, cada apertão que vocês tiveram”.

Em março do ano passado, Inês Etienne depôs perante a Comissão da Verdade, que em dezembro publicou um arrepiante documento, segundo o qual 434 pessoas morreram ou desapareceram durante a ditadura. Depois da audiência pública na qual Inês Etienne falou de afogamentos, choques elétricos e estupros sistemáticos, ela foi ovacionada pelo público e sua irmã Celina declarou: “A sua história é de heroísmo, você não tem mais o que temer. Você venceu”.

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