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E se fosse ‘700 europeus mortos em um cruzeiro que afundou em Malta’?

Se o título fosse esse, os jornais dariam a notícia à exaustão. Escrevo sobre viagens, mas hoje falo de um problema nosso

Paco Nadal

Seria una notícia impactante, não é mesmo? Mas, calma: o título é de mentira. Se fosse verdade, correriam rios de tinta nos jornais durante semanas, seriam transmitidas horas e horas de programas noticiosos especiais em todas as televisões, haveria textos à parte com pequenas biografias de todos os mortos, o Parlamento Europeu interviria na questão e os governos nacionais também, normas seriam alteradas e seriam fixadas leis para que isso não voltasse a acontecer, seria revisada a legislação sobre cruzeiros e até modificado o Pai Nosso ou a receita da Coca-Cola se fosse necessário para que semelhante tragédia não se repetisse.

Mas, como lhes disse, o título é de mentira. Ou, pelo menos, inexato. De fato, na segunda-feira morreram afogadas 700 pessoas no Mediterrâneo, em águas de Malta, quando tentavam alcançar as costas italianas. Mas não eram europeus brancos, saudáveis e bem alimentados como você ou eu. Eram negros e eram pobres. E o barco não era o luxuoso cruzeiro de férias como o da foto de cima, mas uma sucata flutuante sobrecarregada como a da foto abaixo. Do resto da notícia, tudo está correto. Eram 700 vidas que buscavam um futuro em outro lugar do mundo, menos inóspito que o seu, desaparecidas em um suspiro porque o barco-sucata onde tinham sido colocadas pelas máfias assassinas de seres humanos virou quando todos foram para o mesmo lado no momento em que apareceu no horizonte um pesqueiro português que ia em seu auxílio.

Neste blog falo de viagens e de turismo. Falo de coisas banais, irrelevantes e lúdicas às quais uma parte privilegiada da humanidade pode dedicar seu tempo livre. Mas hoje não me sinto bem para falar de turismo nem recomendar bons hotéis nem descrever rotas maravilhosas. Eu morreria de vergonha se fizesse isso.

Hoje me sobressalto ao ver que, enquanto alguns de nós podem cruzar os mares bebendo champanhe em camarotes com ar-condicionado, os deserdados da África subsaariana – pobres entre os pobres – morrem aos milhares a cada temporada afogados às portas de nossa casa, tentando encontrar uma vida mais justa para eles e seus filhos.

Sei que a solução para o problema não é fácil. Mesmo que combatêssemos essas máfias (o que não fazemos), apareceriam outras. Enquanto houver demanda haverá assassinos mal nascidos dispostos a fazer a oferta. Também sei que a solução da África não é que todos venham para a Europa. A única solução para a África é que os países ricos decidam investir no futuro para os habitantes desse continente. Que unamos nossos esforços para criar infraestrutura, empresas, colégios, hospitais e emprego na África. Além do mais, que façamos isso usando vias não governamentais: o maior inimigo de todos esses deserdados da Terra não são as ondas do Mediterrâneo. São seus próprios governantes, corruptos e ineptos até limites insuspeitáveis, que estão há décadas vivendo à custa de seus povos.

Mas sou pessimista e sei que pedir isso é como fazer um gesto sem sentido. Amanhã, no mais tardar depois de amanhã, esses 700 “turistas” negros e pobres terão passado à hemeroteca. E ninguém se lembrará deles, e nós e nossos governantes voltaremos às pequenas misérias diárias de nosso mundo prazeroso e organizado.

Mas, se você quer ajudar sem necessidade de que o seu governo se decida antes a fazê-lo, há muita gente anônima, muitas ONGs, muitas associações trabalhando in loco pela dignidade desses seres humanos. E você pode ajudar já, agora mesmo, sem esperar que a Assembleia Geral da ONU se reúna para olhar o próprio umbigo. A decisão é sua. Quantos párias amontoados deverão ainda morrer afogados em um barco-sucata à vista de nossas praias para que tomemos consciência de que esse é, sim, um problema nosso, de todos? Até o Papa disse: “Eram homens e mulheres como nós. Buscavam a felicidade”. Perdoem a digressão. Mas hoje eu não poderia falar de turismo.

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