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“Casa popular em áreas nobres, não!”

Moradores ricos de São Paulo se mobilizam para vetar a mudança de vizinhos pobres

Terreno na Vila Leopoldina (à dir.), vizinho de prédio nobre.
Terreno na Vila Leopoldina (à dir.), vizinho de prédio nobre.

Na esquina oposta ao “maior lançamento imobiliário do ano”, um empreendimento na Vila Leopoldina, zona oeste de São Paulo, composto por duas torres de apartamentos com varanda gourmet que custam até 3 milhões de reais, quadras de tênis, um parque aquático e até um supermercado da rede Pão de Açúcar, um terreno virou motivo de discórdia.

A área de 30.000 metros quadrados, usada atualmente pela Companhia de Engenharia de Tráfego (CET), foi demarcada pelo Plano Diretor da cidade como um terreno destinado à construção de casa popular, a contragosto dos vizinhos, que agora se mobilizam para tentar mudar a lei.

“O nosso pleito é que a área seja uma biblioteca parque, ou até um próprio parque mesmo”, explica Rafael Bernardes, diretor de planejamento da Associação Viva Leopoldina, uma das entidades mobilizadas para modificar a destinação da área.

O argumento da associação é que o terreno abrigou a garagem da antiga viação Âmbar e o solo estaria contaminado pelo óleo dos ônibus que estacionavam ali.

“A questão não é que o bairro não quer moradia popular, isso seria uma coisa higienista. O que a gente quer é deixar claro que aquilo é um terreno contaminado e que isso pode acabar adoecendo os moradores”, explica ele, que afirma que a instituição só descobriu sobre a contaminação depois de saber que o terreno havia sido considerado uma ZEIS (Zona Especial de Interesse Social) tipo 3 –que prevê que 60% da área vire habitação popular para famílias que ganham até três salários mínimos, 20% para os que ganham até seis e o restante pode ser usado para uso não residencial.

De fato, o terreno de número 928 da avenida Imperatriz Leopoldina funcionou como uma garagem de ônibus e está contaminado. A CET, entretanto, afirma que o trabalho de descontaminação do terreno já está em andamento -informação confirmada ao EL PAÍS por um funcionário que trabalhava no local na manhã da última quarta. “Nas amostragens realizadas não foram observados valores acima dos limites de intervenção da Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb). Portanto, não existe risco às pessoas no local, sendo a única recomendação a de não utilizar poços para captação de água subterrânea”, explicou o órgão, por meio de uma nota. Não há, portanto, qualquer impedimento para que a área abrigue qualquer tipo de prédio.

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Apesar de a associação ressaltar que seu pleito não tem viés higienista, há moradores que afirmam que a chegada de um imóvel voltado aos mais pobres “desvalorizaria a região”. Na área próxima ao terreno despontaram, nos últimos anos, uma série de imóveis como o lançamento descrito acima. Na rua paralela, a Carlos Weber, por exemplo, um prédio recém-construído, com três torres de apartamentos, tem imóveis vendidos a 2,7 milhões de reais. O terreno fica a cinco minutos de carro do shopping e do parque Villa-Lobos e da marginal Pinheiros, uma das principais vias de acesso da cidade.

“Como é que pode?”, pergunta à reportagem Olívia Bohn, 52, dona de um estacionamento na frente do terreno disputado, ao ser informada sobre as intenções da Prefeitura. “Vão tirar as pessoas da favela e colocar aqui? Não é discriminando todas as pessoas que virão, mas tem um monte de bandido no meio. Vai acabar com o sossego do bairro”, diz ela.

“É só você ver o Cingapura [conjunto de casas populares] que fizeram ali atrás do Ceagesp. É uma sujeira. Cheio de bandidagem. Se fizerem um aqui vai acabar com a região. Todo mundo que mora aqui com certeza vai sair”, diz o morador Demércio Pacheco, 45.

“A região não comporta esse tipo de coisa. Tem muita gente de nível alto aqui. Só para você ter uma ideia: lembra do picadinho? Aquele dono da Yoki que a mulher matou e picou... Então, foi na Carlos Weber. E o cara da Friboi? Aquele que a mulher mandou matar... Foi ali também”, conta ele. “E teve aquele caso famoso daquela médica que matou o filho, a nora e se matou”, complementa Bohn.

Pressão social

O terreno na Vila Leopoldina não é o único contestado por associações de moradores da cidade.

O Plano Diretor, aprovado sob forte pressão dos movimentos sociais em julho do ano passado, aumentou em 117% o número de terrenos onde só poderão ser construídas habitações populares. Com isso, numa estimativa tímida, haverá área para a construção de 240.000 novas residências para os mais pobres nos próximos 16 anos. O déficit habitacional estimado na região metropolitana de São Paulo é de 670 mil casas.

Depois de aprovado, o Plano Diretor tem que ser regulamentado por meio da Lei de Parcelamento, Uso e Ocupação do Solo, que decide o que será feito em cada uma das 31 subprefeituras da cidade. Esse processo, que está em andamento, é aberto para a participação dos munícipes, que apontam sugestões de mudanças ao que foi aprovado no plano. Essas observações são avaliadas pelos técnicos, que podem fazer as alterações ou não, de acordo com a lei. O texto final, já com a contribuição popular, deve chegar à Câmara Municipal ainda neste semestre. Neste momento, os vereadores também poderão propor novas alterações.

Uma das mensagens de moradores deixada no site da Prefeitura.
Uma das mensagens de moradores deixada no site da Prefeitura.

“A gente está acompanhando esse processo e sabe que tem um movimento em São Paulo para diminuir o número de ZEIS”, conta Benedito Roberto Barbosa, dirigente da Central de Movimentos Populares, uma das entidades de luta pela moradia que atuam na cidade (são, ao menos, sete). Transformadas em ZEIS, essas áreas ficam congeladas e a construção de imóveis ou empreendimentos que não sejam para a população pobre fica proibida. “Há uma pressão muito grande do mercado imobiliário. Mas estamos preparados para uma verdadeira luta na Câmara", diz Barbosa.

Durante a discussão do Plano Diretor, no ano passado, os movimentos sociais chegaram a acampar na Câmara para pressionar pela aprovação da lei, que estabelece diretrizes para São Paulo até 2030. Mesmo assim, associações de moradores, em parceria com vereadores, conseguiram retirar áreas de habitação popular que estavam previstas em bairros nobres, como a Vila Nova Conceição, um dos metros quadrados mais caros de São Paulo, e Alto de Pinheiros.

No espaço destinado para a atual discussão da lei de zoneamento, há ainda queixas de moradores de bairros como Tatuapé, que também realizaram um abaixo-assinado para a modificação das áreas destinadas para as moradias populares, Jardim Vitória Régia (no Morumbi), e Parque Continental (próximo ao Jaguaré, também na zona oeste). O último grupo, inclusive, encaminhou aos vereadores uma “nota de repúdio” à ideia, em que afirma: “A lei sancionada pelo prefeito Fernando Haddad poderá invadir áreas nobres e de classe média (...) Os moradores indignados se mobilizam contra a criação de zonas para habitação popular e áreas de mais comércio por causa da desvalorização do bairro”. E pedem: “Casa popular e comércio em áreas nobres, não!”

"Não vejo motivos para a mudança, fora o preconceito"

T.B

O urbanista Nabil Bonduki, que foi o vereador relator do Plano Diretor e hoje é Secretário da Cultura da Prefeitura, afirma que não há motivos para a retirada do terreno da Vila Leopoldina das áreas de ZEIS.

Pergunta. É possível mudar a característica do terreno?

Resposta. Em tese, a Lei de Uso pode mudar isso. Mas o Plano Diretor estabeleceu diretrizes muito claras para destinar áreas para habitação popular. Neste caso, é um terreno municipal, subutilizado, num local que precisa de habitação popular. Não vejo motivos para a mudança, fora o preconceito.

P. Mas algumas áreas já foram tiradas antes da aprovação do plano, como a da Vila Nova Conceição.

R. Retiramos algumas ZEIS nas regiões do centro expandido porque eram terrenos particulares, em áreas muito caras. Era inviável financeiramente desapropriar para habitação popular.

P. Em quanto tempo vamos ver os efeitos do plano na cidade?

R. Depende muito da capacidade de implementação da Prefeitura. Os efeitos poderiam ser sentidos em três anos, mas isso também precisa de investimento do mercado, que está em baixa. Há coisas práticas que começaremos a ver mais rapidamente, como as ciclovias, as áreas culturais.

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